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Newsletter - 29/11/24

Atualizado: 7 de mar.

Geneviève estudava engenharia mecânica e era musicista.



Trilha sonora dessa edição: Soledad, Jorge Drexler 


Salve, salve, 


Eu sempre fui uma contadora de histórias, mesmo antes de começar a escrevê-las. Meu maior passatempo, na infância, era inventar aventuras para mim mesma. Tantas vezes fui exploradora, rainha e onça. Pensava em todo o enredo, e suspeito que teria sido uma boa dramaturga (além de atriz e diretora), porque após pensá-lo, o encenava como se fosse uma peça de teatro. 


Cresci e continuei falando comigo mesma, criando situações fantásticas, interagindo com pessoas imaginárias e me colocando em diálogos impossíveis. Já dei muita entrevista para a Marília Gabriela sobre meu último romance. Já fui no Altas Horas falar da minha parceria com a Tulipa Ruiz e tive uma poesia musicada pelo João Bosco. E vivo isso em sonhos também, como já falei por aqui. Em uma das minhas incursões oníricas - que são quase sempre muito interessantes - lia um conto chamado “O Nono Favo”. Nele se apresentava a história de uma pessoa que iria dividir a casa com um fantasma. Levei para a terapia, e meu analista me disse que favo também é um sinônimo de cela. Além de ter aprendido algo novo, fiquei super inspirada para escrever um conto a partir desse título, que fatalmente seria sobre algo sobrenatural, mas não necessariamente de terror. 


Comecei a escrever e me deixei levar pela intuição, e quando me dei conta, tinha escrito um conto sobre feminicídio. Nada de muito estranho. Minha faceta de antropóloga não se separa da minha de escritora, e se há algo que estudei profundamente, foi violência contra a mulher, em diferentes contextos. Eu gosto do conto, embora nunca tenha sido capaz de publicá-lo. Quem sabe um dia, faço um livro de contos, e incluo ele. 


Um dia desses, a antiga proprietária da minha casa entrou em contato comigo pelo Facebook, pois precisava vir pegar algumas correspondências. Madame Claire tinha como foto de perfil o laço negro que simboliza luto. Fiquei pensando se era algo recente, e se eu precisaria enviar minhas condolências, e fui ver sua página. Lá encontrei a foto de uma moça jovem, que comemorava seu aniversário. Ao ler a descrição, que indicava a idade da moça e o ano em que ela havia morrido, entendi que tinha sido vítima de feminicídio. Na mesma hora eu me contei uma história: aquela pessoa tinha morrido no massacre ocorrido na Escola Politécnica de Montreal, em 1989. No dia 06 de dezembro daquele ano, um jovem homem entrou atirando na escola, se dirigiu até uma sala de aula, mandou todos os homens saírem e matou as 14 mulheres presente. No massacre, ele ainda feriu outras 10 mulheres. Declarou que estava “lutando contra o feminismo”.   


Curiosa como sou, resolvi pesquisar o nome das vítimas, e para meu absoluto espanto, lá estava o nome dela, Geneviève. Minha história, que eu achava muito fantasiosa, acabava de se tornar realidade. Aquela moça, aquela vítima, era filha dos antigos proprietários da minha casa. Então meu conto veio com tudo na minha memória, e pensei em como tudo a nossa volta nos fala, nos alerta e de uma certa forma, nos inspira. Geneviève era jovem, como minha personagem, e morreu no pleno exercício da sua liberdade. 


Continuo sob impacto dessa história, mas não estou assustada. Resolvi contar para vocês para refletir sobre a importância de nos escutar, como o espírito do tempo nos alimenta, como a arte reflete (e é reflexo) o mundo e as realidades que nos cercam. Eu escrevi um conto sobre feminicídio antes de saber que morava na antiga casa de pessoas que sofreram essa enorme violência. Não há coincidência, nem vaticínio nisso. Mas há algo profundo e inquietante, que vibra ao nosso redor. Basta estar um pouco atenta (ou distraída, como no meu caso), e sobretudo, disposta a agarrá-lo, para fazer dele uma ferramenta de aprendizado, ou pelo menos de investigação sobre nossas experiências e nossa relação com a vida ao redor. 


Até breve,


Lívia 


  

 
 
 

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