Newsletter - 25/04/25
- Anna Davison
- 25 de abr.
- 4 min de leitura
Atualizado: 9 de mai.
Buscando o feio encontrei o belo
Trilha sonora para essa edição: Remembering, Avishai Cohen
I
Encho a xícara de café. Escolho a trilha sonora. Ligo o abajur. Sento e olho para o teclado à minha frente. Reparo primeiro nas minhas unhas sempre por fazer. Penso que, se nunca as faço, elas não estão exatamente por fazer. Mesmo que normalmente eu tenda a achar que deveria estar fazendo as coisas de outra forma. A vida ideal que só existe nas fantasias que cultivo e que provavelmente não me faria feliz, porque não tem absolutamente nada a ver com quem eu sou. É um pouco como a produção criativa, qualquer que seja ela: tem uma versão ideal, fantasiada e muito desejada, e uma versão real, possível e, por isso mesmo, muito mais verdadeira.
A questão é que, para deixar que essa verdade nasça, é preciso aceitar que há feiura, desconforto, medo e todos os sentimentos que tento esconder.
II
Há uns anos, fiz uma disciplina de pintura na Universidade. Meu processo consistia principalmente em colocar muitas camadas de tinta na tela e, depois, com um pincel bem molhado de água, arrancar pedaços dessas camadas. Muitas vezes surgiam formas que me pareciam humanas, o que sempre me encantava. Em uma das telas, vejo quatro figuras meio flutuando em névoa e sou transportada para a infância, quando descíamos a serra a caminho da praia e a estrada era engolida por aquele ar branco e frio que impedia que se visse o que estava a poucos metros. Eu olhava pela janela e imaginava todos os enormes bichos que passeavam por entre as árvores apagadas pela neblina.
O que eu não sabia era que esses bichos todos poderiam ser eu.

O professor de pintura passeava por entre os alunos e parava olhando o trabalho de alguns, comentando, perguntando, fazendo sugestões. Quando ele se postava diante do meu cavalete, quase sempre me perguntava onde estava o que não é bonito. A ideia de que eu tinha que fazer uma pintura feia me desconcertava. Tentei fazer com que as misturas de cores que apareciam espontaneamente com a água que eu usava gerassem cores desagradáveis. Uns amarelos amarronzados, ou uns brancos sujos. A verdade é que sempre falhava.
III
Eu não sabia ainda, mas é a escrita a expressão que me permite exibir o que há de feio em mim. Quando comecei a mostrar meus textos para outras pessoas, publicando parágrafos nas minhas redes sociais, passei a receber mensagens de amigos me perguntando se eu estava bem. Mal sabiam eles que eu estava melhor que nunca, porque tinha finalmente aprendido que sou também sujeira, cores feias e sons dissonantes.

Hoje, me surpreendo quando recebo mensagens de pessoas que se identificam com o que eu escrevo. Sinto como se fizesse novos amigos, mesmo que nunca mais venha a falar com eles. É que há potência nesse compartilhamento.
IV
Estou escrevendo um livro novo há mais de ano. A ideia nasceu de um sonho que tive. Nele, os mortos não eram enterrados ou cremados, mas colocados em cápsulas e enviados ao espaço. Guardei especialmente a imagem de uma dessas cápsulas, uma mulher mais ou menos da minha idade, com cabelos cacheados como os meus, mas nada parecida comigo. Por meses quis que nascesse daí um livro de ficção científica, um gênero que não leio normalmente. Fiz um esforço para incluir essas leituras na minha rotina, mas o mais longe que consegui ir foi ler (e me apaixonar) pela Ursula K. Le Guin.
Passei então a ler livros e mais livros sobre o luto. Foi quando percebi que talvez o que eu precisasse fazer era incluir no livro um pouco da história do meu luto pela perda do meu irmão, que morreu há 18 anos. Entendi também que esse livro precisa ser fragmentário, como são as memórias. Tudo muito bem, até que me dei conta de que a dor da perda não é individual. Compartilhar minha dor é também potencialmente abrir as feridas da minha família. Sem perceber, comecei a escrever um texto cheio de justificativas para a feiura que eu estava pintando, cuidando para que as camadas de tinta que criei sobre a pele ao longo dos anos para lidar com a perda só fossem lavadas nos pontos certos. E travei.
V
Comecei a achar que o livro estava indo por um rumo que não me agradava. Tinha virado sobre o meu irmão e as cápsulas que deram o ponta pé inicial estavam apagadas, escondidas sob a neblina. Foi preciso sair do carro que seguia na inércia e entrar na floresta branca. Aceitar encarar todos os meus bichos escondidos e ver a beleza que existe neles.
Quem diria, buscando o feio encontrei o belo!
Uma hora o livro sai.
É isso!
Até breve,
Anna
📚Li Quiçá, da Luisa Geisler, e não sei muito o que achar. É um livro que se utiliza de recursos que me agradam mas que, de algum modo, não funcionam muito bem ali. Parece uma certa colcha de retalhos de exercícios de oficinas de escrita, mas não é exatamente ruim. A leitura até que flui bem.
📚Também li Parte de la felicidad, da Dolores Gil. Não sabia que tratava justamente da morte de uma de suas irmãs. Foi uma surpresa interessante. É um livro curtinho e bem escrito.
📚Poesía estructurada, da Cecília Pavón, foi o quarto livro que terminei desde minha última newsletter (acabei também o do Viktor Frankl). Como tudo que li dela, queria ter escrito esse livro também. Amei!
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