Newsletter - 12/12/25
- Anna Davison

- 18min
- 4 min de leitura
As sombras que caminham pelas paredes ainda são as mesmas.
Trilha sonora para essa edição: Cocoon, Haruhisa Tanaka
I
Estar em casa é também enlouquecer.
II
Terminei um dos poemas do escrever de boca aberta, livro que publiquei ano passado pela Editora TAUP, com essa frase. No poema, eu falo de uma viagem de carro, durante a pandemia, entre a fazenda dos meus pais, perto de Brasília, onde eles estavam isolados, e São Paulo, onde eu vivia.
Os tempos eram estranhos, como bem sabemos, mas nunca me senti tão livre como naquela estrada.
III
Também nunca escrevi tanto como naqueles dias. Uma espécie de febre que me fazia largar o garfo sobre o prato, enquanto a comida esfriava, para anotar no caderninho o pensamento urgente. A frase perfeita.
Poucas vezes voltei aos cadernos e as centenas de frases perfeitas se perderam, escritas a lápis ao lado de listas de compras e outras coisas que eu não podia esquecer.
E esqueci.
IV
Há mais ou menos um ano, eu estava lendo De Quatro, da Miranda July. No livro ela conta também de uma loucura, nascida da perimenopausa, momento em que também eu estou. Agora, já não sei se voltar para casa é também enlouquecer. Talvez seja mais se deparar com quem fomos, com as relações que construímos com os espaços e as pessoas que neles habitam. Uma espécie de espelho para o passado que nem sempre é fácil de encarar.
As sombras que caminham pelas paredes ainda são as mesmas.
Em muitos sentidos, eu também.

V
Fim de ano é sempre tempo de fazer balanços. Uma convenção muito arbitrária que nos faz a olhar para trás.
Acho que esse ano passou mais rápido que qualquer outro.
Não tenho dormido bem.
Me irrito por não poder reverter a passagem das horas.
Já não consigo escrever com tanto afinco.
Estou em Brasília, a cidade onde mais estou em casa.
Me sinto nostálgica e hoje seria aniversário do meu avô.
VI
Na casa dos meus pais, sento por horas em uma rede perto da janela para olhar a luz do sol na árvore lá fora. Escuto os barulhos tão familiares que agora parecem mais altos. Me dou conta da maior banalidade possível: sem a dança do sol, não há sombra. Sem sombra, não há loucura, ou lucidez.
Mesmo em casa.
VII
Em vão, tento agarrar as sombras, parar as horas.
Sorrio pensando que tentar agarrar as sombras é também enlouquecer poderia ser a frase. Me dou conta de que tentar agarrar qualquer coisa faz com que seja mais dura a visão dessa mesma coisa se esvaindo quando muda a luz. Me deixando vazia.
Tentei, por três vezes, me estabelecer em Buenos Aires. Tenho três projetos de livro na gaveta e a consciência de que o único livro que publiquei nasceu sem que eu pensasse nele como um projeto. É hora de parar de buscar.
Sentar e ouvir.
Pelo lado de dentro.
VIII
Ainda assim, foi um ano bom. Aprendi muito e me sinto feliz. Nessa nota, decido que essa é a última newsletter do ano, mesmo sabendo que posso mudar de ideia semana que vem.
Então, por ora, te deixo o poema completo e desejos de um 2026 cheio de energia para criar!
dióspiro
estou plantada no meio da cozinha
meu pai termina de arrumar frutas e verduras
da sua horta para eu levar
comigo estou pronta
os gatos miam pedindo comida levo tudo para o carro
ouvindo as recomendações do meu pai
meu coração começa a bater
mais alto e já quase não ouço apenas concordo
entro no carro aperto o cinto ajusto os espelhos
abro a janela aceno
para meus pais em pé na porta
sinto um aperto na garganta pego a estradinha de terra e antes de chegar
ao asfalto percebo que estou
em casa no lugar de onde
nunca saí no pasto uma grande árvore de galhos secos
ostenta um tucano um bom agouro
mil quilômetros me esperam ao redor
tudo seco a se esfacelar
o tucano não canta agora mas ouço seu canto
no fundo dos ouvidos
seco duro sombrio
[como um som tão sem cor sai daquele bico multicolorido?]
a excitação me toma de assalto ligo o som sorrio penso que sou feita de estrada
ali não pareço louca mesmo quando canto
a plenos pulmões ou grito de alegria
a excitação vai se acomodando o asfalto já parece quente a essa hora da manhã
tenho tudo o que preciso nessa casa que habito
[os tucanos gostam de caqui também adoro caqui aquele gosto doce e luxuriante entre os dedos]
li que esse nome é japonês
o da fruta
em português se chama dióspiro
[como um nome tão sério guarda um sabor tão sensual?]
doze horas me esperam
me fundo com o carro sou o pé no acelerador e os olhos
no caminho vou mais rápido do que gostaria queria ficar
estou em casa a música a comida
no banco do passageiro
a água cada vez mais morna o calor
um senhor completamente nu anda sozinho
no acostamento sinto um aperto na garganta como ele
estou só
tamborilo o ritmo da música no volante
danço com a estrada
três estados me esperam
atravesso um rio largo com barcos em forma de casa reflexo perfeito de mim o nó
na garganta
se desfaz em choro
o choro vira sorriso
o sorriso vira gargalhada
estar em casa é também enlouquecer
Até janeiro (ou a semana que vem)!
Anna




Comentários