Newsletter - 21/11/25
- Anna Davison

- 21 de nov.
- 3 min de leitura
Escrever na água.
Trilha sonora para essa edição: A Harp Note to Emily Dickinson, Anne Vanschothorst
I
É difícil escrever na claridade.
É difícil escrever no escuro.
É difícil escrever na água.
É difícil escrever.
II
Há semanas venho falando dessa espécie de bloqueio que vem tornando a escrita das newsletters mais difícil. Na verdade, é a escrita que parece estar me escapando. Busco em muitos lugares onde está aquele desejo de colocar no papel as pequenas sensações diárias
ao olhar as pessoas
ao sentir a pele se aquecendo
ao escutar os pássaros e a fonte
ao redor
III
Talvez eu esteja buscando demais. Tentando me encaixar em um modelo que não compreende as minhas pequenas sutilezas. Pode ser também porque minhas unhas andam precisando de cuidados e já não olho tanto meus próprios dedos.
Tenho dormido meio mal e passo os dias sonolenta. Me forço a fazer exercício, tenho comido melhor e parece haver alguma espécie de paz.
Como toda paz, escrita na superfície da água.

IV
Há mais de um ano, me propus escrever um poema por dia. Pensei que, assim, poderia ter um novo livro depois de um ano. Há de haver 20 ou 25 bons poemas entre as 365 opções, quis me convencer. O plano durou uma semana. Gosto de dois dos poemas. Acredito que outros dois poderiam ser lapidados, se eu fosse capaz de seguir trabalhando com as coisas que já não estão na superfície da água.
De todo modo, me parece uma média altíssima e impossível de ser mantida por 52 semanas seguidas.
V
Fecho os olhos e escuto a fonte às minhas costas.
VI
Não há nada mais real que o barulho da fonte às minhas costas.
VII
Meu companheiro comentou outro dia que minhas newsletters andam cada vez mais curtas. Pode ser mesmo, tenho gastado tempo procurando chegar ao outro lado desse lugar em que me meti querendo, de novo, me encaixar em alguma espécie de modelo pré estabelecido (na minha cabeça) do que é ser uma escritora:
Tem que escrever todo dia
Publicar um livro por ano
Ir a eventos
Mostrar a cara

VIII
Tudo sendo uma enorme e duradoura performance embaixo d’água.
Performance, me diz um antigo texto da SP Arte é “uma construção física e mental que o artista executa num determinado tempo e espaço, na frente de uma audiência. É um diálogo de energia, em que plateia e artista constroem juntos a obra”.
Diálogo de energia. Tempo e espaço. Constroem juntos.
IX
Me interessa muito pensar a literatura desde esse ponto de vista. Como algo que é também performático.
Eu, por exemplo, venho aqui e faço um discurso sobre a dificuldade de escrever, enquanto escrevo e te convido a sentir o que quer que seja que essas minhas palavras te causam.
É por você que tento espichar o texto, manter a energia do diálogo um pouco mais de tempo ativa.
Será que a escrita embaixo d’água dura mais que na superfície?
X
Abaixo a cabeça e noto o reflexo da árvore e dos pássaros na tela. Escrever em muita claridade faz da tela um espelho. Espelho concreto, já que escrever é sempre também uma tentativa de nomear o que vejo atrás do espelho que reflete minha cara cansada.
Tem uns fios de eletricidade e os pássaros pousam e se sacodem por alguns segundos antes de
voar de novo
Pelo céu pequeno e recortado que cabe na minha tela.
Mais embaixo, observo meus dedos pulando sobre as teclas. Não é possível ver que as unhas precisam de cuidado.
XI
Dizem que as unhas podem mostrar deficiências em nossa alimentação. As minhas andam frágeis. Eu ando frágil enquanto me despeço de mais uma casa. Despacito, pianinho.
Nessa casa derradeira, de onde vejo um céu imenso e uma nesga da água do rio que eu penso ser mar, escuto todo o tempo o som de uma harpa. Hoje quis passar em frente e deixar minha contribuição para a música que é a trilha dos meus dias. Repetitiva como eles. Uma senhora de chapéu de palha e cara séria dedilha as cordas, sem parar. Uma turista grande e loira, de vestido verde limão, filma por um longo tempo. Não sei se ela fez um zoom nos dedos que tocam a harpa.
Eu, como sempre, apenas segui.
Até breve!
Anna




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