Newsletter - 14/11/25
- Anna Davison

- há 26 minutos
- 3 min de leitura
Não quero escrever essa newsletter.
Trilha sonora para essa edição: Eravamo senza saperlo, Teho Teardo e Stefano Bollani
I
Não quero escrever essa newsletter. Estou sentada na biblioteca, em uma mesa antiga com uma cadeira pomposa, mas não quero escrever essa newsletter. Decido ir até o café, 4 pisos abaixo, onde peço uma torta de alho poró e um chá. Minha mãe diz que, quando eu era criança e não queria comer, bastava me oferecer alho poró. Hoje, porém, comer a torta não me ajudou a ter vontade
de escrever.
O café da biblioteca dá para uma escadaria com uma fonte no alto. Fixo meu olhar ali e observo duas meninas que vêm descendo a rua em direção à escada. Uma delas desce mais rápido, a outra começa a dançar na frente da fonte. A primeira olha para trás, vê a amiga dançando e rapidamente pega o celular para filmar.
A palavra espontaneidade me aparece em neon.
II
Mais cedo, quando estava chegando na biblioteca, vi um moço com uma camiseta de Brasília e o elogiei. Ele ficou absurdamente desconfortável e eu me arrependi daquele segundo de espontaneidade.
Logo depois, quatro andares acima de onde agora estou, sentada na cadeira antiga e chique, li um texto da Francyne França em que ela fala sobre intuição, “no sentido do vislumbre de algo cujos contornos ainda são muito precários, uma percepção sem clareza, a experiência de conhecer sem compreender, por assim dizer”. Me pergunto, então, se intuição e espontaneidade podem ser manifestações dessa mesma coisa que dá fluidez ao processo de criar, já que escrever é também dar vazão a alguma coisa com contornos muito precários. Assim como a dança na frente de uma fonte no meio de uma rua. Ou elogiar um estranho que te rechaça.
Mas eu não quero escrever essa newsletter e faz tempo que me percebo rígida e cheia de certezas, com bem pouco espaço para intuição e espontaneidade.
Agora é a palavra morte que me aparece em neon.
III
Faz mais ou menos um ano que saí do Japão e parece que, desde então, os dias se sucederam em bruma. Antes de ir para lá, eu dizia que, depois de conhecer o Japão, eu podia morrer. Agora acho que isso aconteceu um pouco. Como se eu tivesse ultrapassado alguma espécie de portal e não pudesse mais fazer as coisas que fazia antes.
Há umas duas semanas, comecei a sentir uma ansiedade muito aguda, que me acelera o coração nas horas mais inconvenientes, fazendo com que a presença desse órgão ocupe não só a caixa torácica, mas toda e qualquer possibilidade de pensamento, intuição, ou espontaneidade. Sigo meio perdida, sentindo o coração como um músculo volumoso e pesado que se mexe em ondas (quase) nauseantes.
IV
Para piorar, desde que a Sarabatana entrou na geladeira, passei a perceber de forma mais presente que já estou há tempo demais nesse desencaixe. Um deslocamento que veio quando atravessei aquele tal portal que, acho, estava no templo que guarda o túmulo do Yasujiro Ozu, e que me deixa aérea, passando os dias a matar o tempo.
Lembro que tirei uma foto no reflexo de um dos vidros da porta de um dos templos que formam o complexo onde está o cemitério. Acho que foi ali que deixei minha alma. Mas tudo bem, porque, como já dizia Fernando Pessoa, morrer é preciso.

V
Vendo a menina dançar por não mais que 30 segundos em frente à fonte, como em um palco cheio de sol, penso que, querendo ser grande, ando deixando muita poesia escapar pelas mãos. As mesmas mãos que agora digitam esse texto que minha cabeça não quer escrever.
Como um alento, meu cérebro grita que é exatamente isso o que faz um escritor: escreve porque deve, mesmo sem vontade. Escrever é preciso.
Uma forma de renascer? é a frase que pisca em neon.
Até já!
Anna
📚Sigo na companhia do Mishima, passeando por uma Tóquio que não existe mais, torcendo para encontrar aquilo de mim que ficou por lá.




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