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Newsletter - 31/10/25

Frio.

Trilha sonora para essa edição: Sounds of healing in isolation, Spirituals

I

Buenos Aires segue fria. Hoje é o último dia do mês de outubro e o frio insiste em voltar. Percebo que mudei, já não me incomodo tanto com a falta de calor. Assim como já não me incomodo tanto com ter meus planos, de algum modo, frustrados. Aprendo aos poucos a seguir as coisas com o ritmo mais lento dos que não sofrem da necessidade de tudo ver.

Ou de tudo escrever.

II

Houve uma semana, durante a pandemia, em que entrei num frenesi de escrever tudo o que via, sentia, pensava. Foi uma experiência que gostaria de repetir, mas sei que não é possível. Não agora.

Em Ushuaia, tomamos um barco para ir ver lobos marinhos e pinguins. No que há de mais ao sul antes do polo, emolduradas por montanhas, vimos casas perdidas. Não era possível ver em detalhes, mas algumas pareciam maiores e mais modernas, outras não passavam de cabanas. Me vi sentada à janela de cada uma delas, revivendo a experiência do isolamento e da escrita frenética. De olhos fechados, pareceu real.

III

Paradoxalmente, gosto de escrever em cafés, no meio de pessoas que não conheço, ouvindo músicas que não me trazem nenhuma memória.

Também isso tenho feito pouco. De muito, só o caminhar. Até subi uma montanha coberta de neve. Não sei explicar o que senti quando me vi sozinha lá em cima, ouvindo vozes que o vento trazia. Orgulho, talvez. Ou a certeza de alguma mudança que vem operando lentamente em mim. Silenciosa como a neve caindo.

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IV

Lembrei de um poema que escrevi há um par de anos, num clima bem diferente, como um prelúdio do que sinto hoje:

Fecho os olhos

Aperto uma pedra na mão direita

Fria

Ouço através da pele

a água que lapidou

a pedra que aperto

A mão direita carrega o barulho do rio

Escuro

Fundo como os meus olhos

cansados


Faz tempo

Desenvolvi uma obsessão

Olho meus dedos até não ser

possível ver

a pele seca

a pinta na palma que é

o meio do caminho entre duas linhas

Mapas para esse lugar 

desconhecido

no peito magro e murcho 

da idade


Reparo nas pequenas vibrações

Na pele

rachada

Quase vontade de me fazer

não estrangeira

Enquanto sigo as ruas como se fossem

as linhas

que comprimem a pinta que vi nascer

e agora 

some


V

Deve ser saudade do que já não é, agora que me preparo para ir embora de novo. 

Ser estrangeira é uma ideia de mim que vem ocupando algum espaço mental faz tempo. Uma condição que me atrai e me repele em igual medida. Como a noção do envelhecer. 

Outro dia, andando na rua, cruzei com umas meninas de 19, 20 anos e tive a clara revelação de que me tornei uma mulher de meia idade, uma coroa. Contei essa descoberta para algumas pessoas e não encontrei muito eco. Parecia óbvia demais. 

Até que ouvi do meu irmão que, além de uma coroa, sou muitas outras coisas.

VI

Quem sabe eu precise de obviedades? Agora sei que preciso de menos do que imaginava, mesmo que o mundo me ocupe bem mais. Uma espécie de congestão de estímulos que, agora, precisam ser digeridos.

Peço paciência e silêncio. Soa melancólico, eu sei, mas é muito bonito também.


Até semana que vem!

Anna

 
 
 

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