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Newsletter - 07/11/25

É preciso paciência para pescar um poema.


Trilha sonora para essa edição: Sakura, Susumo Yokota


I


Vou embora de novo em menos de um mês. Como sempre, ando pela cidade com um misto de tristeza e saudade antecipada. Tento lembrar do que não me agrada para ver se consigo fazer a partida menos dolorosa. Não funciona, acabo só ficando triste mesmo.


Passo batom vermelho de manhã, para ver se me sinto melhor, saio para andar, sento em um café para tomar um chá. A música é (quase) sempre ruim e os preços, indecentes. 

Na mesa ao lado, um casal. Ela fala sem parar, ele apenas olha e, quando fala, faz uma pergunta meio psicanalítica. Eu tento prestar atenção à conversa, para ver se pesco um poema.


II


A cidade está cheia de flores roxas. No catolicismo, essa é a cor da paixão (no sentido de sofrimento), e eu penso que casa muito bem com essa despedida, Uma pequena morte a cada vez que me mudo. 


De repente começa a tocar Morcheeba no café e eu sinto que não há mesmo despedidas, fins, e começos. É tudo uma grande espiral de sensações e afetos.


I'm so glad to have you but it's getting worse.


ree

A moça diz que vive hoje com nostalgia de uma sensualidade que ela viveu com outra moça, com quem era tudo como um ícone da personalidade da outra. Queria poder perguntar como é essa sensação no corpo, ou como ela escreveria sobre isso. 


De minha parte, sinto o mesmo, mas em relação aos lugares.


III


Há cidades mais sensuais que outras. Quero dizer sensual no sentido de sensório aqui. Tem cheiros e texturas e sombras que me movem mais em alguns lugares que em outros. Buenos Aires é bastante sensual, de algum modo, me embriaga. Quero comer chocotorta, medialuna con jamón y queso e tomar vinho o dia todo, principalmente agora que se aproxima o fim.


Tóquio é sensual de outra forma, elegante, quase etérea. Sinto saudade de lá quase todo dia. Montreal não é tão sensual, mas acabo sempre precisando voltar. Uma espécie de lar que se forma forçosamente. Brasília e sua seca, meu eterno amor. São Paulo e seus excessos que me fazem tão livre.


Queria entender o que nos move de lugar para lugar, para além das explicações muito racionais que me dou. Agora é hora de ir para Montreal porque o inquilino do nosso apartamento está saindo, antes disso devemos passar pelo Brasil para pegar um pouco de calor antes de encarar outro inverno. Buenos Aires não é mais barata e estamos meio desconfortáveis nesse apartamento. Tudo ficção. 


A escrita vem funcionando como uma espécie de termômetro: quanto menos sensual o lugar, mais escrevo. Saudade do Paraguai.


IV


Semana passada, logo que publiquei a newsletter, me senti muito mal de não ter falado da chacina no Rio, como se não falar disso fosse assinar um atestado de alienação. Hoje já não sei se há mais alguma coisa a ser dita sobre todo o absurdo. O horror. A dor.


Me sinto impotente demais para dizer. Um dia, chorei por horas: por mim, por quem viveu o horror, por sentir em cada centímetro do corpo uma sensação tão aguda de inadequação. 


V


A moça da mesa ao lado conta de um último encontro com a ex paixão sensual. Tanto choro, tanta loucura. Consigo pescar um poema:


Tempo juntos

Acto de servicio

Afirmaciones positivas

Afectos

Regalos

Lê o moço 

em seu celular e diz

: são formas de demonstrar 

amor

A moça conta em resposta 

faz tempo sente 

prazer

em servir  


VI


Eu sou das afirmações positivas. Gosto de sentir o amor na língua, através das palavras que digo ou escrevo. Pensando nisso, salivo.


I'm so mad to love you, And your evil curse.


Mas não consigo viver sem você, literatura!


Um beijo,

Anna



📚No processo de preparação para a mudança, recebemos meus pais e meu irmão, viajamos para Ushuaia e nos ocupamos de coisas práticas que me deixaram com muito pouco tempo para ler. Estou lendo beeeem devagar, o forbidden colors do Mishima e não sei ainda o que acho do livro.

 
 
 

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