Newsletter - 09/05/25
- Anna Davison
- 9 de mai.
- 3 min de leitura
Os giros que o cérebro dá
Trilha sonora para essa edição: Promenade Sentimental, Vladimir Cosma
I
Perceber pequenas mudanças em mim mesma não é tão fácil quanto enxergar os fungos que crescem nas frutas esquecidas na fruteira. É preciso me observar com afinco, notar breves reações diferentes frente aos mesmos estímulos. Sorrir com a descoberta de que tantas coisas acontecem sem que eu me dê conta. Não que eu não tenha me esforçado (com muitos anos de psicanálise) para aprender a não me irritar com pequenas ou grandes coisas que fogem ao meu controle, mas quando percebo que consegui e que agora minhas formas de lidar com o mundo foram atualizadas, me alegro. Penso que a vida é boa, como bem nos lembrou Eunice Paiva.
Escrever é um processo parecido (ou seria justamente o caminho para me observar com afinco?), um mecanismo de observação que me foge completamente ao controle. Primeiro escrevo uma palavra, pensando que ela vai me permitir construir a frase que estava na minha cabeça quando me sentei de frente para a página em branco. Depois observo meus dedos caminhando por outros caminhos e reagindo de outra forma àquele primeiro estímulo. A palavra primordial. O ponto de partida para toda uma viagem pelo interior dos sulcos e dobras do meu cérebro.
II
Busquei na internet pelo nome dessas dobras do cérebro e aprendi que se chamam giros. Como as voltas que damos por aí. As voltas que dou pela cidade para inspirar os giros que permitem que meu cérebro caiba dentro da minha caixa craniana. Os giros que me permitem escrever, seja porque me permitem ver a poesia que vive em cada coisa, seja por processos físico químicos que jamais serei capaz de entender.
Adoro essas coincidências.
III
Não adoro tanto o não poder controlar, pelo menos na vida. Na escrita, me divirto. Começo um texto querendo falar que ando percebendo mudanças importantes em mim, quase um tributo à psicanálise, ou uma elegia a quem já não sou, e termino falando do cérebro e seus giros. Só depois de escrever essa frase é que percebo que nada está separado.

Acho que não comentei por aqui antes, mas há muitos anos, quando meu irmão morreu, me aproximei do Budismo. Depois me afastei, retornei e me afastei de novo. Ainda assim, acho que essa é a filosofia/religião com que mais me identifico. Na verdade, há muitos Budismos e aquele em que tomei refúgio é o da Terra Pura. Nessa escola, há o que os japoneses chamam de Tariki, o outro poder, aquele que não podemos controlar, que vem das ações e inações de todos os seres. Como um efeito borboleta.
Nada está separado.
IV
Em comum, gosto das mudanças em mim mesma e daquelas que meus textos operam. Talvez o que eu esteja buscando seja justamente entender que controlo mesmo muito pouco e que é justamente quando deixo de querer controlar que a poesia acontece. Por isso, é preciso dar giros e permitir que seus homônimos cerebrais ajam livremente. Ou talvez, esse texto seja só um convite para uma caminhada sem rumo, de olhos e boca abertos, prontos para receber o mundo.

Nas palavras da Ana Estaregui, em Dança para cavalos (um poema que eu queria ter escrito):
de todos os exercícios, caminhar
andar para pensar melhor
estalar os ossos e esticar a cartilagem
até soltar todo o ar que havia
entre a pleura
e o pulmão
o pescoço, a bacia, o calcanhar
caminhar
resgatar a boa ordem dos pés
sequências intercaladas de peso
e suspensão
caminhar
para encontrar um vácuo, um vulcão
uma sequência de números primos
uma pedra um sinal amarelo brilhante
caminhar à noite, entre árvores
atravessar o quarteirão, farejar o alecrim
andar até o fim de um cais imaginário
andar como quem assopra
caminhar à luz do dia,
uma lanterna acesa
Vamos?
Até breve,
Anna
📚Li pouco essas duas semanas: Espuma, notas da Maria Luque, um livro lindo do tipo que eu ainda quero escrever, notas e pequenos desenhos sobre a vida e suas trivialidades; e Tesis sobre una domesticación, da Camila Sosa Villada, um livro importante, mesmo que angustiante.
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