Newsletter - 14/03/25
- Anna Davison
- 14 de mar.
- 3 min de leitura
Procrastinação. Medo do sucesso e que tais.
Trilha sonora para essa edição: Waiting for Bojangles, Playlist do Spotify
I
Li dois livros ao mesmo tempo essa semana que tratam muito do processo de escrever, O cheiro das Flores à Noite, da Leïla Slimani, e El Viaje Inútil, da Camila Sosa Villada. Foi por coincidência que li os dois ao mesmo tempo. Confesso que nem sabia que eles falavam sobre escrever, mas tomei como um sinal para que eu refletisse sobre meus próprios processos criativos.
Faz muitos meses que a única coisa que escrevo é essa newsletter (e essa semana, quase que ela não sai). Tenho dois projetos quase prontos abandonados e me forço a escrever péssimos poemas quando me sento em algum café. Não é difícil de imaginar que, há semanas, tenho questionado muito meu desejo de ser escritora.
II
A verdade é que, ao longo da vida, o que observo é que tenho uma tendência de abandonar as atividades criativas a que me entrego. Fotografia, pintura, culinária. Ainda assim, acho que com a escrita é diferente, porque ela me estrutura. Não é um hobby, é uma forma de pensar, ou melhor, de libertar os pensamentos que vivem tão no meu íntimo que mal consigo acessar. Talvez seja meu lado escuro, mesmo que eu custe a querer lhe conferir qualquer status de beleza. Por isso mesmo, minha escrita, normalmente, não é leve.
De todo modo, a sensação que tenho é de que venho tratando a Anna escritora como um hobby, aquela que vem à tona quando o tempo é propício, quando a procrastinação me dá uma trégua. Não posso deixar de me perguntar então, do que é que tenho tanto medo nela. Quero dizer, se a escrita me estrutura, me ajuda a enxergar meu lado oculto e me dá um prazer que não me lembro de ter experimentado de outra forma, por que a evito tanto? Que medo é esse que tenho dos meus desejos, de me aproximar do meu próprio coração selvagem (salve, Clarice)?

O processo que desenvolvo na psicanálise há muitos anos, que têm, de algum modo, me feito buscar ser mais desejante, têm me mostrado que algumas atualizações são muito mais difíceis de operar que outras. Passei 45 anos seguindo (ou achando que sigo) o caminho que se espera de mim: relacionamentos longos e sérios, trabalho formal com reconhecimento, viagens pelo mundo, um lar bonito e confortável. Uma escrita escondida. Eu escondida.
Desconfio que está chegando a hora de saltar nesse imenso desconhecido (ou subir as escadas do sótão)!
III
Acreditei (ou quis acreditar) que publicar um livro seria suficiente para me fazer escritora, sem saber que é o contrário, é por ser escritora que pude publicar um livro. Posto assim, eu sei, parece banal, óbvio e até pueril, mas é um primeiro passo para que eu entenda meu lugar no mundo e saia das sombras. Das minhas próprias sombras. O sucesso dá um medo enorme!
Não estou falando de sucesso em termos financeiros ou de reconhecimento, mas em ser eu mesma, com o claro e o escuro, o bonito e o feio, o doce e o amargo. Com a vida como ela é. Comigo, plenamente.

IV
Deixo aqui, então, mais um poema do meu livro, uma prova de que essas questões me povoam há muito tempo mesmo:
hábito
o que vive sob a casca treinada nunca dorme qual vulcão à espera
borbulha aquece dilata
é como gestar uma fera fico sempre à espreita
olho para aquela lava que tanto cheira a enxofre
meu sangue
quase sem querer adivinho seu sabor a ferro
a língua ávida busca por mais
[devo estar com anemia]
não sei o que acontece quando o que está dentro é da mesma matéria do que
está fora
não posso conceber ser uma só sem erupções por vir
qual maré
subo e desço sem que seja preciso qualquer esforço
a maior resistência vem do grafite duro e seco como eu
até se chocar com a água salgada e derreter por completo rolo a língua na
boca outra vez para me certificar de que ainda estou aqui
se me torno uma só minha própria lava me engole sinto gastura com o barulho
do grafite a possibilidade de ser exposta quando vejo que aquela que me
encara no espelho
não sou eu
[a falta de sono maldita insônia]
a própria fera pronta para dar o bote
num último ato de sucumbir por completo à autofagia
[me sabe bem]
É isso.
Até breve (espero eu com menos procrastinação)!
Anna
📚Li também Esperando Bojangles, do Olivier Bourdeaut. Um livro lindo! Por coincidência, acho que também coube muito bem no meu momento, por mostrar como a loucura pode ser só uma outra forma de estar no mundo.
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