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Newsletter - 04/07/25

O paraíso em fragmentos.


Trilha sonora para essa edição: El paraiso, Nación Ekeko e Julieta Venegas


I


Formigas enormes invadiram nossa cozinha. Fizeram buracos do tamanho de moedas no saco de tâmaras, entraram como uma manada no cesto de frutas frescas sobre a bancada.


II


Homens uniformizados vieram podar as árvores da rua. Deixaram os galhos grandes caírem com estrondo, arrebentaram os fios da internet e me deixaram no escuro.


III


Espalhei dezenas de páginas com os fragmentos que comporão meu próximo livro pelo chão da sala. Preciso dar forma para a narrativa sem sequência que estou criando e a visualidade me ajuda. Agora, o fragmento 64 está entre o 12 e o 79. Sinto alegria, aquela conhecida sensação de que estou prestes a criar alguma coisa muito minha. 


Os funcionários da empresa de internet tocaram a campainha para consertar o problema causado pelos funcionários da prefeitura. Recolhi meus fragmentos e, automaticamente, me entristeci.


IV 


Fui a um show da Selva Almada com a Julieta Venegas. Uma sala grande, sem móveis, a não ser pelo piano ao fundo. Quadros abstratos nas paredes, luz baixa, livros em estantes embutidas. Selva leu poemas que não eram dela, Julieta a acompanhou no piano. Depois, Julieta cantou suas músicas, tocou piano e violão, enquanto Selva olhava para ela.  


Fechei os olhos e tive certeza de que devia estar ali, um fragmento de paraíso.


V


Uma semana antes disso, fui ler alguns poemas na feira do livro brasileiro da Universidade de Buenos Aires. Foi lindo! Mas a semana anterior foi terrível,


uma angústia me apertando a glote

noites cheias de espasmos 

uma tristeza sem explicação. 


No caminho para a Universidade, no ônibus, fui tomada por uma náusea estranha e pegajosa. Meu corpo inteiro rejeitando estar naquele trajeto.


Antes de sentir o paraíso.


VI


Nas últimas semanas percebo o mundo assim, em pequenos fragmentos, reflexos de luz, palavras soltas, detalhes do meu próprio corpo. O todo é grande demais, quando tento abarcá-lo, queimo a língua. Tenho a sensação permanente de que meus olhos estão inchados como se eu tivesse chorado por horas. Me olho no espelho prestando muita atenção aos cantos internos das pálpebras e não há sinal de inchaço. 


[De onde vem esse peso?]

VII


Criar é estar à deriva. 


Acordei com essa frase na cabeça, depois de sonhar com uma sala em que um retângulo muito perfeito de areia servia de parquinho para uma criança que escolhia e mudava de pais quando queria. Os homens que o menino escolhia ficavam alegres como se fossem eles os pequenos. Ser o escolhido parecia ser uma honra enorme e eles logo começavam a desempenhar o papel que lhes cabia como responsáveis por aquela criança.


Lembrando agora, acho que o menino era cego.


VIII


Me resta agora transformar cada fragmento em poesia.


Ou, nas palavras de Mary Oliver, em suas Instruções para viver uma vida: Presta atenção.

Espanta-te.

Fala disso.



Até breve,

Anna



📚Terminei The first bad man, da Miranda July. Assim como com All fours, gostei, mas de um jeito estranho, em que alguma coisa me incomoda, talvez porque parece se arrastar desconfortavelmente.


📚Comecei a ler Pensar com as mãos da sempre maravilhosa Marília Garcia. Há tempos tento me aprofundar mais no universo dos ensaios e estou empolgada com esse.

 
 
 

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