Newsletter - 20/06/25
- Anna Davison
- 20 de jun.
- 4 min de leitura
Vi um lindo peixe de ouro, pesado e sólido, nadando em um espaço profundo.
Trilha sonora para essa edição: Double fantasy, John Lennon e Yoko Ono
I
Assoei o nariz aproximadamente 20 mil vezes nos últimos 5 dias. Tossi mais ou menos 10 mil vezes e espirrei outras 3 mil. Li muito e cheguei a várias conclusões que, agora, não posso afirmar que sejam confiáveis. Não tive febre, mas as milhares de interrupções que meu corpo provocou nos meus pensamentos podem ter gerado algumas alucinações. Em um dado momento, apertei os olhos contra o pescoço do meu companheiro e vi um lindo peixe de ouro, pesado e sólido, nadando em um espaço profundo, escuro e pontilhado de estrelas coloridas. Depois de mais algumas respirações, o peixe virou a esquina em alguma dobra desse cosmo e adentrou um lago formado por um caleidoscópio em tons de cinza.

Passado o momento idílico, restou uma primeira descoberta (ou consolidação de uma certeza, para ser mais precisa): não gosto mais de histórias com começo, meio e fim muito redondinhos. Principalmente fins! Me sinto presa em uma única possibilidade de interpretação, aquela que me é dada por quem escreveu a história. Acredito piamente que uma obra só se faz completa quando um outro a vê, lê, interpreta. Livros que se explicam demais, perdem essa força, ficam mancos, quando se pretendem o inverso.
II
Entrei na oficina permanente da Cecília Pavón (uma grande alegria!) e ouvi dela que nós, brasileiros, somos minimalistas em nossa poesia. Não foi em tom de crítica, pelo contrário, mas fiquei com essa ideia pulando na minha testa sem febre enquanto tentava entender o que ela quis dizer com isso. Concluo que tem a ver justamente com essa percepção de que não é preciso dizer mais que o necessário (parte importante da primeira descoberta). Cada vez mais tenho certeza de que a escrita se completa com o corte.
O ciclo de um poema seria mais ou menos assim, então:
Sair para caminhar
Observar o gato com cara de briguento a quem falta um pedaço da orelha te encarando e encará-lo de volta
Ouvir do senhor elegante de calças de veludo verde que esse mesmo gato quer ser levado para casa
Parar para olhar o homem de braços cruzados e olhos fechados, com a cara voltada para o sol, de frente a uma loja de discos de onde sai uma linda melodia que não é possível identificar, interpretada em um cravo produzido por um luthier em 1779
Buscar no mapa o café mais próximo para sentar e escrever
Pedir um bule de chá
Anotar em um caderno as impressões gerais da caminhada
No computador, dar às impressões alguma forma e ritmo
Não ler o poema por dias
Voltar ao poema e cortar o que está sobrando

III
Uma segunda descoberta (ou consolidação de uma certeza, para ser mais precisa): não tenho em mim a garantia de ser artista. Não como Yoko Ono, ou Ney Matogrosso (terminei a biografia dela e vi o filme sobre ele). Não sou capaz de abrir mão de tudo para viver como artista. Não ainda, de todo modo. A parte triste da constatação, que gerou o apertar dos olhos que me fez nadar com o peixe de ouro, é que, quase sempre, quem decide seguir com tanta paixão suas verdades, consegue sucesso.
Eu quero sucesso.
Não estou falando de sucesso financeiro apenas, mas de uma paz que, intuo, venha da certeza de estar fazendo exatamente o que o desejo aponta. Sucesso em ser exatamente quem se é, sem apologias ou amarras. Para isso, faço psicanálise há quase uma década, chegarei lá.
IV
A terceira descoberta tem a ver com meu apetite: nem a gripe me tira o apetite. Não apenas de comida, mas de ver e sentir as coisas. Isso não significa necessariamente uma vontade de estar na rua, antes, o que quero é me sentir imersa naquilo que me desperta os desejos. Ler, ler e ler mais um pouco, talvez?
(Ah, e canja realmente é uma maravilha para quem está doente)
V
Antes de voltar para a cama, deixo um poema da Cecília Pavón, do La crítica del arte, de 2016, que me trouxe uma sensação parecida com a que tive lendo sobre Yoko e vendo Ney (e que me parece ilustrar um pouco o processo que descrevi aí em cima:
La vanguardia
Tengo un millón de poemas que pasar
(además de un beso en la casa del sueño).
No sé si existe la vanguardia,
pero el futuro es un beso en la casa del sueño.
Para escribir un poema hay que sentirse rara.
No sé si existe la vanguardia, pero ahora estoy
escribiendo un poema en una plaza y soy feliz
(en este mundo de enemigos).
La vanguardia es ser feliz en este mundo de enemigos.
La vanguardia es el alma que viaja
desde muchos siglos atrás.
Mi miro escribir y pienso que mi letra manuscrita forma un ánfora
un recipiente
un ánfora de barro
en otra dimensión
Até breve!
Anna
📚Terminei a biografia da Yoko, escrita pelo David Sheff. Me encantei e tentei me inspirar muito na artista que ela é, mas achei a biografia meio longa.
📚Li Oração para desaparecer, da Socorro Acioli. Gostei da premissa e Socorro escreve bem, mas achei que é um dos livros que explicam demais.
📚Li Hold, da Victoria LeBlanc, uma poeta e artista de Montreal. Achei muito bonito e delicado.
📚Comecei a ler The First Bad Man, da Miranda July. Mal comecei, mas estou gostando.
Seguindo o ciclo proposto, chegou-me um poema minimalista: Um passo na rua em busca do verso.
O gato sem orelha, com uma dor no olhar.
Um velho de veludo diz que ele quer um lar.
Um homem de sol, de braços em cruz,
e um cravo de 1779 chora uma canção sem nome.
O mapa me aponta o refúgio do chá,
a tinta anota o rascunho do mundo.
Na tela, a palavra encontra seu esqueleto.
Depois, o silêncio para a forma assentar,
e a tesoura fria corta o que não vai ficar.