newsletter - 30/05/25
- Lívia Vitenti
- 30 de mai.
- 2 min de leitura

Trilha sonora para essa edição: Canção verdes anos - Carlos Paredes e Fernando Alvim
Salve, salve
Os ônibus em Montreal têm assentos paralelos, que ficam à frente aos assentos enfileirados. Dias desses eu estava sentada de frente para um homem, que dormia profundamente. Na frente dele, outro homem também dormia. Não passava das 5 da tarde, mas evidentemente aquelas pessoas estavam muito cansadas. Fiquei observando os dois, notando as diferenças, pensando se eu poderia identificar algo em comum entre os dois. Mas não, eram muito diferentes, estavam vestidos de forma muito diferente e certamente não tinham a mesma idade, e um deles chamava mais atenção que o outro, pela forma contrastante como estava vestido. Calças de alfaiataria perfeitamente cortadas, meias impecáveis e um sapato social lustroso e novíssimo, tudo isso tentando combinar - sem muito sucesso - com um casaco impermeável vermelho e uma mochila bem surrada, com a qual dormia abraçado.
Fiquei absorta olhando seus pés. Já nem me lembrava mais do formal contrastando com o esportivo. Era como se, ao olhar seus pés, viajasse no tempo. De repente, era como se, ao invés de estar em um ônibus em Montreal em 2025, estivesse em um bonde em Buenos Aires, nos anos 40. Ou acompanhando meu avô ao banco. Meu avô nasceu em 1910 e era um senhor alinhado. Se vestia muito bem, para fazer qualquer coisa.
Sabe essa sensação que temos quando conhecemos alguém pela primeira vez, mas é como se estivéssemos reencontrando uma velha alma amiga? Eu não podia parar de olhar para seus sapatos, e sentia que estava procurando neles alguma resposta.
Há algo de lento e silencioso no passado. E eu estou precisando de silêncio. Sinto que todos os meus espaços livres acabam sendo ocupados por algo barulhento. Um podcast, uma conversa, e muita demanda pela minha atenção.
Na realidade, acho que além dos sapatos, o que tinha apelo para mim era seu cansaço. Eu me sentia cansada também, mas não a ponto de adormecer no ônibus. Minha cabeça não pára, e para que eu consiga apagar como ele apagou, preciso estar em um ambiente muito propício. Porque esse barulho ao qual me refiro não está só do lado de fora, ele está dentro de mim.
Eu queria ir com aqueles sapatos a um passado lento e silencioso. Mais que a um passado utópico, queria ser transportada a um lago, um rio ou um bosque. Queria ser peixe ou pássaro, e não pessoa. Por um momento só, eu gosto de ser pessoa. E apesar de cansada, ando feliz, com coisas boas acontecendo. E quase sempre, desde que sou muito jovem, vejo as coisas como um bom sinal. Sou uma otimista que só precisa de tempo (e menos ansiedade) para parar, deitar numa rede e ler um livro.
Já tenho o livro e ontem mesmo montei um suporte para rede. As paredes aqui são finas demais, nunca tive coragem de colocar uma armação. Mas como boa neta de amazonense (o avô chique era de Manaus), nada me traz mais tranquilidade do que o balancinho de uma rede.

Hoje mesmo deito na minha rede e leio meu livro. Prometo.
Até breve,
Lívia
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