Newsletter - 28/02/25
- Anna Davison
- 28 de fev.
- 4 min de leitura
Pernilongos, vestidos e espaço para sentir
Trilha sonora para essa edição: Muses, Remy Van Kesteren
I
O primeiro texto que publiquei na vida falava de uma dança de pernilongos em uma noite calorenta de São Paulo. Isso foi antes de eu me permitir me chamar de escritora, antes do início dessa vida de agora. Antes. Hoje escrevo de um jardim a 2.222,6 quilômetros daquele apartamento em São Paulo, ainda cercada pelos pernilongos, que, para ser sincera, nunca dão bola para mim quando tem outras pessoas por perto.
Agora, como então, estou só e não vejo motivos para escrever sobre os pernilongos, embora siga gostando de escrever sobre as pequenas banalidades da vida. Recostada em um sofá desconfortável, enquanto um completo estranho anda pela calçada falando alto ao telefone, penso no que me dá vontade de escrever, que é exatamente o mesmo que me faz querer fazer uma foto, ou dar um sorriso: os detalhes.
O cadarço que envolve a estrutura de metal da cadeira pendurada do teto que se faz notar pelas pontas dos nós que arrematam as voltas em torno do que dá forma às costas da cadeira. Ou as folhas muito pequenas que secam esquecidas sobre o piso de azulejos verdes e desgastados. Ou meus pés que repousam sobre a mesa de centro de madeira de demolição onde estão três cinzeiros cheios de cigarros fumados por quem quer que tenha passado por esse lugar antes de mim.
II
O que passa despercebido sempre que estamos com pressa é o que me move a querer escrever. Por isso, preciso poder contemplar, andar vagarosamente pelas ruas, ouvir os sons ao redor. Nada disso tem acontecido e acaba que, nos últimos dias, andei me sentindo sem poesia. Escrever esse texto, porém, me ajudou a perceber que ando é sem dar espaço para que as pequenas coisas se mostrem para mim. Preocupada com questões práticas do cotidiano, quase não vejo o minúsculo caramujo que atravessava lentamente a calçada, ou as folhas novas da planta onde mora o Buda do meu jardim.
Não é uma questão de tempo, mas de espaço. Explico: Mesmo quando a rotina anda corrida, temos que nos deslocar de um lugar a outro, temos que comer, tomar banho, dormir. Ou seja, temos tempo. Mas será que nos damos espaço? Nos distanciamos das coisas para poder enxergar o banal que mora em tudo?

Na saída do jardim, resolvi andar de olhos muito abertos e prestei atenção no meu corpo, me dei espaço para sentir o vento frio que batia, fazendo meu vestido dançar ao redor das minhas pernas e para reparar na moça que tomava um sorvete enquanto tentava tirar os cabelos da cara. Vi beleza, escrevi mentalmente um poema que logo esqueci. Sorri.
III
Quando comecei a escrever esse texto, pretendia mesmo era falar do que sempre volta na minha escrita, dos temas recorrentes que povoam meus poemas, mas o que veio foi outra coisa, foi buscar em mim aquilo que me faz querer escrever, o que, admito, acontece com muita frequência quando coloco ideias no papel, elas ganham vida própria. Então, que seja, é véspera de carnaval e o que vale mesmo é a abertura para experimentar novas formas de estar no mundo. Assim pretendo que seja meu feriado, com espaço para olhar as fantasias, reais e imaginárias, para reparar no brilho que vai sobrar nas calçadas, para ouvir o ritmo das batucadas. Quero escrever poemas e dançar, mesmo que sozinha na sala de casa.
Então, fico por aqui, seguindo o ritmo dos meus desejos, e te desejando um carnaval muito vivo, com uma poesia do meu livro (que ficarei muito feliz se você quiser comprar):
arquitetura
o rastro de um avião no azul como o de um barquinho de papel
um esquilo halterofilista me encara
seus braços curtos e musculosos os olhos
duas bolas de gude muito pretas
crianças que carregam no corpo os trejeitos de seus pais os ombros
baixos as palmas muito voltadas para trás os pés
um pouco abertos para fora se eu soubesse geometria
arriscaria dizer o ângulo de abertura
no lago três patinhos nasceram há uma semana são cinzas
maiores do que eu poderia esperar
não arrisco determinar seus pesos
o rastro que deixam na água é mais fino que o da mãe
segue o mesmo padrão uma textura de corte
que não dura mais que alguns segundos refletida
no céu cortado pelos aviões a envergadura das asas
dos patinhos é menor que minha mão
não faço ideia de quantas asas de patos recém-nascidos caberiam
nas asas do avião
entrei numa sala para ver uma entrevista com o henry moore e vi
ele exibindo um pequeno esqueleto de pássaro delicado
os ossinhos formando uma complexa estrutura para
sustentar aquela existência desaparecida

Até breve!
Anna
📚Li A passageira, da Lorena Martins, e ele me deu muita vontade de voltar a escrever com mais frequência. Lorena me fez ver que a poesia ainda há de nos salvar.
📚 Estou lendo os textos enviados para a Sarabatana número 7 também. Vamos anunciar nossa seleção em breve!
Comentários