Newsletter - 27/09/24
- Anna Davison
- 27 de set. de 2024
- 4 min de leitura
O tempo das coisas. Os detalhes. O banal.
Trilha sonora para essa edição: Sushi. Roti. Reibekuchen - Brian Eno, Holger Czukay, J.Peter Schwalm
I
Hoje faz um mês que cheguei ao Japão.
Desde que cheguei, coleciono momentos banais. Detalhes do que se desenrola em um tempo todo seu, diante dos meus olhos enamorados. O Japão é tudo o que eu esperava. E mais. Mas, à parte o fato de que não sei como vou sobreviver sem os banheiros daqui (o que são esses banheiros, gente?), percebo que o Japão que me apaixona mora nos detalhes.

Dou um exemplo: estou escrevendo essa newsletter sentada no terraço calorento de um café moderninho, tomando pequenos goles de chá gelado, ouvindo música latina. O espaço dá para uma viela onde mal passam duas pessoas. Do outro lado, uma diminuta capela shintoista. O garçom acaba de sair para colocar uma garrafinha de saquê no altar.
II
Há uma semana, meu companheiro e eu fomos a uma cerimônia, em Kyoto, no maior templo budista da escola em que, há 6 anos, tomei refúgio (se chama assim o "batizado" budista) e que acabei abandonando pouco depois. Fomos a convite de um monge das Ilhas Canárias que conheci em Brasília logo antes de tomar refúgio e que encontrei na Alemanha um tempo depois, no maior templo da Europa. Achei que me sentiria voltando para casa, mas, apesar da beleza extraordinária de tudo - a música que saia de instrumentos que eu nunca tinha visto ao vivo, os paramentos, o edifício - me senti deslocada. Queria fazer parte, mas não pude. Olhei para as pessoas ao meu redor e entendi que aquele lugar é delas. Um pouco como se passa com a escrita. Não adianta forçar para produzir o que não é meu.
Talvez por isso seja tão importante, para que eu possa escrever, estar em uma rotina. Me alimento de olhar o banal. E isso só vem quando já me sinto, em alguma medida, em casa.
III
Admito que esse me sentir em casa pode vir de forma muito inesperada também. Na segunda, fui sozinha para uma cidade a quatro horas de Osaka, na região de Gifu, nos chamados Alpes Japoneses. Cheguei a Takayama, onde me hospedei, no meio da tarde, deixei as coisas no hotel e fui caminhar. A cidade tem muitos templos, de diferentes denominações budistas, um ao lado do outro, formando um caminho que, hoje, é turístico. Numa ruela meio fora da rota, vi um pequeno templo aberto (os templos no Japão costumam ficar de portas fechadas a maior parte do tempo). Entrei e, pronto, estava em casa.
Me sentei em frente ao altar e, antes de meditar, pedi para ver o caminho. O meu caminho.
Quando abri os olhos, notei uma porta à esquerda da nave. Entrei e me deparei com um altar para Ganesha (sim, em um templo budista no Japão). Foi um momento de epifania.
Depois disso, foi como se meu medo eterno de deixar de vivenciar alguma coisa, o famoso FOMO, na sigla em inglês, tivesse se dissolvido. Ainda vi as principais atrações do lugar, mas os pontos altos da viagem foram os momentos que passei naquele pequeno templo, para onde voltei todos os dias da minha viagem.
E observar as garças no rio que corta Takayama.

IV
Você já se dedicou a ver uma garça pescando? É um espetáculo muito lento, como soem ser os que me agradam mais.
Primeiro, ela se achata na água, fica mais parecida com um jacaré que com um pássaro de pernas longas. Depois, observa por muito tempo, até que um peixe passe desavisado debaixo dela. Então, a garça mergulha extraordinariamente rápido e retorna muitas vezes de bico vazio.
Se sacode, se achata de novo, dá o bote e, dessa vez, tem sorte. Sai da água com um peixe enorme, do tamanho do seu pescoço, atravessado no bico. O bicho ainda se debate, tenta escapar, mas ela engole rápido o peixe vivo. De onde observo, mal vejo a presa descendo pela garganta infinitamente mais fina que ela.
V
Entendi que escrever é isso. Se camuflar no espaço e observar, até que um momento de poesia se desenrole debaixo do meu nariz. Depois, é preciso lidar com a palavra sorrateira que tenta escapar e engolir o momento. Sem isso, para mim, a poesia simplesmente não pode acontecer.
A minha sorte é que, desde que consegui me enxergar poeta, passei a ver tudo com uma outra forma de luz. Olhando o banal, os detalhes, encontro a beleza mais impressionante. Tenho sorte. E agradeço.
VI
Para me despedir, deixo algumas notas, detalhes que me encheram os olhos (e a garganta!) nos últimos dias:
Um monge limpando o candelabro pendurado no teto do altar como quem limpa um mecanismo precioso e complexo.
Um jovem pássaro que saiu voando debaixo da almofada da cadeira em que me sentei em um café em Osaka.
A senhora da casa ao lado que conversa comigo como se eu fosse uma vizinha antiga e pudesse entender alguma das suas palavras.
O menino de bicicleta acompanhando o trem e acenando por um largo trecho do caminho.
A cor impossível da água entre verde e azul do rio que vejo da janela.
Um kimono amarelo secando no varal.
O casal compartilhando um livro no trem.
Até breve!
Anna
📚Terminei Okasan e até fiz uma resenha em menos de um minuto dedicada a ele (está nos reels da Sarabatana).
📚Li Los árboles caídos también son el bosque, da Alejandra Kamiya, escritora argentina de origem japonesa. Um dos livros mais lindos que li nos últimos tempos. Os contos se passam no Japão e na Argentina e tratam de temas difíceis, mas com uma delicadeza que só o Japão poderia entregar ao mundo.
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