Newsletter, 26/09/25
- Anna Davison
- 26 de set.
- 4 min de leitura
Correr atrás da bola. Ou o que é ser livre?
Trilha sonora para essa edição: De cara a la pared, Lhasa de Sela
I
“Talvez seja isso o que procuramos ao longo da vida, nada além disto, o maior sofrimento possível para nos tornarmos nós mesmos antes de morrer”. A frase é do Céline e eu a li no livro Outras vidas que não a minha, do Emmanuel Carrére. Li e reli essas duas linhas algumas vezes, queria entender o que essa ideia significa para mim. Fiquei me perguntando se temos mesmo que sofrer para nos tornarmos quem somos.
Cada vez mais, acho que não. Mas também fica cada vez mais claro para mim que não é muito fácil lidar com a liberdade de ser quem somos. O que quero dizer é que me dou conta, com ajuda da psicanálise (obrigada, Mariana!), de que cheguei a um patamar de liberdade, em que posso fazer do meu tempo, virtualmente, o que eu quiser, mas isso me paralisa. Fico buscando voltar para um lugar conhecido em que só preciso seguir uma rotina que não foi decidida por mim: ir para o trabalho, almoçar, fazer exercício, cozinhar o jantar. Buscar a bolinha sendo lançada pelo meu dono. Nada fora do padrão. Nenhum espaço para nada
extraordinário.
Estou envelhecendo e ainda não encontrei exatamente a forma de ser quem sou.
II
Sonho com ir para um mosteiro budista e me instalar lá por muito tempo, seguindo a rotina pré-determinada de meditações/ refeições/ leituras, ou coisa que o valha.
Isso, acordada.
Dormindo, sonho com ideias geniais para livros, que acabo esquecendo quando saio da cama.

Estou envelhecendo e ainda não encontrei exatamente a forma de ser.
III
Queria te convidar a pensar que sofrimento é esse a que o Céline se refere. Não acho que possa ter a ver com algum sofrimento vindo de fora, como a perda de alguém importante para nós, uma guerra, ou o que quer que seja. Penso que tem a ver com alguma forma de sofrer para nos desfazermos das amarras que nos impedem de nos tornarmos, verdadeiramente,
livres!
Talvez a resposta possa ser encontrada na observação minuciosa de pequenas obsessões: meu próprio corpo, os dedos sobre o teclado, a pele seca, as sombras, o que sinto nas entranhas, as cores e os cheiros das cidades por onde ando. Ou talvez a resposta more exatamente no oposto disso, na não catalogação do que já sei de mim.
Estou envelhecendo e ainda não encontrei a forma.
IV
Será que tem coisa mais adulta do que saber lidar com a própria liberdade?
Mesmo que a gente aprenda com a sociedade que ser livre demais é ser irresponsável, eternamente criança, ou alguma outra noção que nos mantenha no nosso lugar de seguidores fieis do que se determinou para nós, vem ficando mais cristalino que ser livre é o que há de mais responsável. Assumir as rédeas do que fazemos a cada dia demanda muita responsabilidade. Deve ser aí que mora
meu medo.
Estou envelhecendo e ainda não encontrei.
V
Nos últimos dois meses, duas pessoas mais novas do que eu, que não eram próximas, mas que fizeram parte da minha vida de algum jeito, morreram de câncer. O livro do Carrére, de onde tirei a frase que inicia essa carta, fala de uma mulher muito jovem que morre de câncer, de uma criança que morre no tsunami no sul da Ásia há uma década e de outras pessoas passando por sofrimentos atrozes assim.
Fiquei abalada, certa de que a vida é um piscar de olhos. Fiquei com medo de que a minha passe justamente no momento em que meus olhos estiverem fechados. Quero mais. Quero escrever a beleza.

Passei um longo tempo, há umas noites, ouvindo atentamente a respiração do meu companheiro. Queria me certificar de que o corpo dele estava funcionando como deveria. De manhã, olhei para meu próprio corpo no espelho com muita atenção, observando os sinais do passar do tempo. Há dias, não escrevo.
Estou envelhecendo.
VI
Ontem, enquanto caminhava, tentei tropeçar em algum poema. Olhei as sombras, que sempre me inspiram, busquei as cores que andaram dominando essa newsletter há umas semanas. Tentei sentir os cheiros da rua. Até que vi uma menina gravando uma canção sentada no gramado da praça.
um microfone com corta vento
um computador equilibrado
sobre as pernas
dobradas na canga
jogada sobre a grama
agora já
verde como a árvore
em que ela repousava
as costas
a cabeça
a boca aberta cantava
uma melodia interrompida
a cada 10
segundos por um cachorro
que latia
feliz porque a bolinha seguia
sendo lançada
Sigamos!
Beijos,
Anna
📚Li Outras vidas que não a minha, do Carrére, e Kitchen, da Banana Yoshimoto. Esse segundo é um livro bem leve, com aquele toque de fantástico tão presente na literatura japonesa contemporânea. Eu gosto.
📚Estou lendo Volverse palestina, da Lina Meruane e gostando muito. Os capítulos curtos, sem quebra de página, não exatamente lineares, têm me dado muitas ideias.
Comentários