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Newsletter - 25/10/24

Uma forma de sonhar acordada.


Trilha sonora para essa edição: Spaces, Yosi Horikawa


I


Economizar palavras. Comunicar o que se quer de forma quase silenciosa. Usar mais as mãos que a língua. Observar.


Há pouco mais de uma semana, chegamos ao Vietnã. Saigon é caos barulho gente motocicletas cheiro de arroz cheiro de gasolina cheiro de carne assando. Uma língua que me soa como se feita de vogais que sobem e descem e dançam. Nos letreiros, palavras com dois acentos ao mesmo tempo, transliteradas por um jesuíta português. Fico querendo fazer sentido de alguma coisa, afinal, temos essa herança lusa em comum. Mistake mistake, como me dizia Akira San em Tóquio a cada vez que eu elogiava sua comida.


É minha segunda vez nesse país. Na primeira, me apaixonei, e agora fico tentando encontrar aquela mesma sensação que acredito ter tido há 10 anos, em Hanói. Talvez eu tenha envelhecido. Talvez minha memória esteja me traindo. Aliás, quando é que ela não nos trai?


II


Escrevo essa newsletter ouvindo o barulho do mar, que quebra quase violento à minha direita, enquanto encaro a piscina natural de água doce à minha frente. Há pouco, nadei com as libélulas. Agora, uma moça estrangeira como eu lê dentro da piscina, sem notar o voo ao seu redor.


Estamos no centro do litoral vietnamita desde quarta à noite. Tudo me lembra o meu Piauí, até que percebo a extrema dificuldade de comunicação. Aqui, nem o tradutor do celular tem me ajudado muito.


A moça anda lentamente na piscina, segurando o livro grosso com as duas mãos.

Eu aperto os olhos para enxergar a tela do computador.


Não há comunicação.



III


Ou há comunicação, ainda que não na forma de palavras?


As pessoas aqui são calorosas, sorriem mesmo quando eu as fotografo sorrateiramente. Tudo se passa de um jeito fluido, orgânico, do trânsito às transações. 


Passamos uns dias com a família de um amigo que mora aqui, casado com uma vietnamita. Na casa tem uma capela. Um quarto grande com um Buda de madeira sentado em um altar cheio de toranjas e incenso. De lá, sai o som de um mantra noite e dia que encobre as buzinas da rua.


De manhã, na calçada em frente, uma das mulheres mais bonitas que já vi na vida vende uma espécie de panqueca de arroz glutinoso com ovo e carne. Ela e o marido espalham pequenas mesas e banquetas dentro do terreno da casa onde estamos. O portão sempre fica aberto até que eles terminem o serviço de café da manhã. Dentro e fora não têm o mesmo significado que para nós.


Enquanto escrevo, já longe daquela rua e da risada deliciosa da filhinha de seis anos do nosso amigo, uma pequena canoa passa ao largo, depois da arrebentação. Eu acompanho o movimento com os olhos, até que já não seja possível ver, e penso que tenho me esforçado demais para me sentir pertencendo. Mesmo que isso seja tão distante do que desejo fazer com minha escrita. Ando mesmo interessada em exercitar mais experimentalismo, mais liberdade. Paradoxalmente, me torno mais rígida com o que está à minha volta. 


A comunicação no que hoje é lar também anda carregando os ruídos das ruas.


Como ouvir o que está dentro com tanto barulho fora? Busco na memória o mantra que por pouco não se tornou apenas música de fundo.




IV


O contraste entre o Vietnã e o Japão é maior que o oco no meu estômago.


Sentei pensando que escreveria uma newsletter quente tropical com cheiro de maresia e do tempero da comida vietnamita que tanto me agrada. Mas a escrita sempre me surpreende. Como uma coisa viva, as palavras vão acessando lugares que eu não tinha trazido ainda para a consciência. Não sei como escapar.


Uma forma de sonhar acordada.


V


Olho para meus dedos, tento me sentir presente. Noto as cutículas descascando e a pele que envelhece mais rápido do que eu gostaria. Me alegro com a agilidade, como se ela fosse um reflexo da flexibilidade do corpo. Minhas mãos sempre me ajudam a voltar para o familiar. Um lugar que é sempre o mesmo, não importa onde eu esteja. É que, para escrever, preciso de rotina, método e respiro, tudo o que não tive nesses últimos dias. Ainda assim, é escrever essa newsletter que tem me ajudado a me manter em mim.


Você precisa meditar, me diria meu companheiro.


Eu preciso meditar, eu repetiria.


VI


O fato de esse lugar me lembrar o Piauí, um lugar onde nunca morei, mas que é meu lugar de segurança, me leva a passar horas pensando no que é a memória, esse bicho voador que nasce de nossa própria ficção. Ouço claramente o som de uma caixinha de música, mesmo com todo o barulho das ondas e já sei que é ele que vai ficar impresso na minha memória desse dia numa praia distante no Vietnã (sim, é isso mesmo, um exercício estéril de controlar o que vai se tornar memória). Talvez escrever seja um pouco isso. Uma forma de instantâneo, como uma fotografia de um momento exato, muito distante do que quer que seja a realidade. E tudo bem.


É mesmo libertador dar lugar a alguma coisa que sou eu, mesmo que eu não enxergue quando olho no espelho.


Eu estou aqui!


Até breve,

Anna


📚Li bem pouco esses dias. Comecei Nevada, da Imogen Binnie, que tem uma mulher trans como protagonista. Um tema que me interessa. Quando terminar, conto para vocês.


📚Um dos meus livros favoritos da vida é O americano tranquilo, do Graham Greene, que se passa em Saigon durante a guerra. Procurei e visitei vários dos lugares em que se passam cenas do livro. É como voltar no tempo.

 
 
 

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