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Newsletter – 24/05/24

Essa é a Newsletter da Revista Sarabatana, enviada semanalmente, sempre às sextas-feiras.

Trilha sonora para essa edição: Horses, Patti Smith

I

Saí do cinema, em uma rua bem perto de casa, às 16h30 de um domingo de sol. Reparei em como o sol batia nas fachadas das casas. Uma delas me chamou atenção em especial, era a única de cor branca. O limite entre a casa e o céu azul tinha um contorno muito claro, como se um holofote iluminasse esse ponto exato. Era poesia em seu estado mais puro. 

II

Um moço comia hummus de um pote de plástico, sentado em um banco da rua. Desejei bom apetite e ele me olhou com os olhos arregalados.

III

No parque, às 21h, ainda estava claro. Um grupo de músicos tocava uma animada música latina. Crianças, mulheres e homens de todas as idades dançavam ao redor. Uma moça de uma beleza desconcertante, olhava a cena de longe e tomava, sozinha, uma cerveja. Ao passar por mim, quase deslizando, tive certeza de que ela sabia de sua beleza majestosa.

IV

Nas três situações, eu sorri.

Como sorrio agora enquanto lembro das imagens para escrever essa newsletter.

V

Finalmente descobri o que pode ser minha rotina, aquela rotina da escritora que venho parindo há anos. Ela começa por olhar a poesia das pequenas coisas. A luz que se filtra na janela e cria sombras geométricas e bonitas na parede de casa. A criança de bochechas, meias e boné rosa-choque (acabei de aprender que o nome dessa cor se escreve assim e que o seu código hex é o #FF69B4), correndo pelo parquinho. A senhora de olhos muito azuis e cabelos cacheados e brancos que sorri para mim quando nos cruzamos no mercado. O gosto do chá oferecido antes da aula de Ioga. Um homem bonito, vestindo uma bermuda creme e uma camisa de linho azul marinho, lendo no banco do parque. A sensação que um filme delicado deixa em mim por dias.

É só depois de me embeber de tudo o que me atravessa – de todos os pequenos gestos, cores, texturas, cheiros que me fazem parar e olhar mais uma vez – que me sinto capaz de sentar para escrever. Noto que, assim, sou mais generosa com minhas palavras, trato meu texto de forma menos crítica.

É o começo de uma escrita menos hesitante, menos censurada.

VI

Tenho cada vez mais clareza de que muito dos meus bloqueios na hora de escrever têm a ver com um medo enorme de me mostrar ao mundo. E se as pessoas rechaçarem o que eu escrevo? Isso é igual a ser repudiada? E se eu magoar alguém? E se o que for ficção se confundir com o que for real e nem eu saiba mais separar esses dois mundos?

Me apresso em responder: nunca houve separação! Lembrar é narrar uma história, portanto, é criar uma ficção. E, claro está, cada um de nós só é capaz de lembrar das coisas através de sua própria perspectiva. Ou seja, não há uma história real. Há apenas a história que eu posso contar. No meu ritmo. Nos meus termos.

Como é libertador!

V

Mas e a tal rotina?

Por enquanto, tem sido assim:

  1. Acordo sempre meio tarde

  2. Tomo café com calma

  3. Escrevo meu diário ainda na mesa de jantar, bebendo os últimos goles do café frio na xícara, ouvindo música (normalmente alguma peça contemporânea de piano)

  4. Faço o trabalho necessário para pagar as contas

  5. Me exercito

  6. Almoço

  7. Saio para andar, para encher os olhos de miudezas

  8. Sento em algum lugar, uma mesa no parque, um café, a biblioteca, e escrevo

  9. Leio leio e leio

  10. Volto para casa e preparo o jantar

  11. Assisto alguma coisa, uma série ou um filme

  12. Leio mais, já na cama

  13. Durmo

  14. Repito

Mentira! Hahaha! Essa é a rotina que eu fantasio. Na vida real, faço uma parte disso, tudo ou nada disso. E tudo bem. A única constância aqui (e em qualquer lugar) é mesmo a inconstância.

VI

Venho preenchendo os dias nessa toada de sorrir ao me aperceber de que, de fato, é preciso muito pouco para que eu me sinta contente – basta o calor chegar, um passarinho cantar, um bolo quentinho com chá, uma tapioca, um beijo roubado no meio da correria do dia. Talvez nem seja preciso tanto nomadismo mesmo, afinal de contas.

Mesmo que minha saudade de outros lares ainda grite de tempos em tempos, é bom poder parar e olhar.

Olha!

Anna

📚Sigo lendo em francês. Estou agora mergulhada em Changer: méthode, do Édouard Louis. É uma forma de autobiografia em que ele conta das transformações que passou para ser quem hoje é. Acho Édouard Louis impressionante! Li dele, antes, quem matou meu pai. Em ambos, somos apresentados a uma França bruta, pobre e preconceituosa, bem diferente da que vemos mais comumente. Recomendo muito! Sei que os dois livros foram publicados no Brasil, pela Todavia.

📽Assisti a Ripley. Que fotografia é aquela? Muito impressionantes o contraste, os jogos de luz e sombra, os enquadramentos. Baseada no livro da Patricia Highsmith, Talentoso Mr. Ripley, de 1955, a séria faz uma atualização dos filmes noir de forma primorosa. Sem falar na delícia que é ver minha saudosa Itália!

🎧Depois de anos sem escutar Horses, da minha amada Patti Smith, ouvi de novo esses dias e me viciei. O disco me traz uma energia incrível! Me sinto com desejo de correr, de criar, de falar, de dançar, de rir. Bom demais!

 
 
 

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