Newsletter - 23/05/25
- Anna Davison
- 23 de mai.
- 3 min de leitura
Escrevo como quem joga água numa pedra
Trilha sonora para essa edição: Canção do mar - David Orlowsky, Daniel Stelter, Tommy Baldu
I
Nas últimas duas semanas fiquei obcecada pela Leanne Shapton. Suas aquarelas simples e escrita direta, a descrição minuciosa de piscinas, cheiros, cores, rotinas. Tudo o oposto do que vivo. Não sou disciplinada, não sei nadar com técnica, fiz natação por muito pouco tempo na vida, mas a água, como boa filha de Iemanjá que sou, me fascina. Leanne me apareceu como uma criatura de um reino que desejo e não conheço. A organização, o madrugar, o se sentir parte de um time.
Mas foquemos na água. A qualidade que a água tem que lhe permite se moldar a qualquer espaço, penetrar qualquer fresta, alterar tudo com a sua passagem, ainda que breve. O jeito como ela altera a forma das coisas que vemos mergulhadas e embaralha nossa noção de perspectiva.

II
Quando eu era criança, meus pais gostavam muito de acampar, visitar cachoeiras, fazer trilhas. Nunca ficávamos em campings, que me lembre. Armávamos a barraca em algum lugar que parecesse adequado para os adultos e ficávamos ali, imersos. Lembro de uma amiga da minha mãe que jogava água nas pedras para acordá-las e me dizia para fazer o mesmo, entusiasmada. Me encantava ver a transformação. As cores e os veios se tornavam nítidos, brilhantes, acordados, de fato.
Era preciso respeitar a água. Ficar atento ao leito do rio, ver se não havia risco de tromba d’água. Eu só esperava. E temia a água muito fria, o fundo que não era visível, o contato com materiais indistinguíveis com minha pele eriçada. Ficava sentada nas pedras, observando a água penetrar todo e qualquer espaço que lhe fosse dado chegar, desejosa (eu, não a pedra) de me encaixar em algum lugar. Qualquer lugar.
Hoje penso que escrevo como quem joga água numa pedra.
III
Essa pedra sou eu.
IV
A escrita me faz acordar para sinais e desejos que ficam adormecidos, empoeirados durante toda a estação de seca, que, devo admitir, anda bastante longa. Ser escritora é o mais perto que já cheguei de uma identidade que é compartilhada com muitas outras pessoas. É brincar sozinha no parquinho, como sempre preferi, mas me saber cercada de pessoas que, de algum modo, são como eu.
O jeito mais confortável de ser solitária.
Ultimamente, tenho experimentado uma sensação física nova com a escrita, uma espécie de alegria que faz meu corpo vibrar. Um quase gozo? Nessas horas, fecho os olhos e tento sentir. Parece uma onda que desce do topo da cabeça até a ponta dos pés, muito parecida com o que sinto enquanto medito. O melhor lugar do mundo. Uma banheira quente.

Percebo que tenho uma quantidade imensa de criatividade pronta para ser liberada como uma enorme tromba d’água, arrancando todos os resquícios do eu embotado de quase duas décadas que se acumula nos meus leitos. Desejo experimentar outras formas, faço pequenos desenhos simples no meu diário - um peixe alado, um croissant. Compro papel e aquarelas, linhas para bordar. Danço sozinha na sala.
Busco movimentos fluidos como os da água.
V
Busco movimentos fluidos como os da água, mas admito que sigo experimentando mesmo os rígidos, controlados, dos nadadores. Uma braçada, duas, respiro, uma braçada, duas, respiro. Eu, a pedra. Como é que se faz para boiar?

Os respiros são quase sempre as leituras. As que me presenteiam com novas obsessões, as que me fazem ter certeza de que estou no lugar e na hora certos. A temperatura da água perfeita, o cloro na medida exata, a luz que se filtra e cria sombras movediças no fundo azulejado da piscina. As leituras que me dão ganas de escrever.
Como já disse em alguma newsletter do passado, mais que escritora, queria poder ser leitora. Gosto de poder observar de fora e de sentir que muitas das coisas que leio calam tão dentro, mas me pergunto também o que isso demonstra, e se a leitura é capaz, como a escrita, de despertar minhas cores e veios adormecidos. Em larga medida, não. O lugar de leitora é, aqui, uma outra forma de solidão. Confortável, infinitamente menos desafiadora.
Então, escrevo, e agradeço.
Até breve!
Anna
📚Li apenas o Swimming Studies, da Lianne Shapton, nessas duas últimas semanas. Demorei-me longamente nas páginas com as fotografias dos seus muitos maiôs, com explicações sobre onde foram comprados e usados. Me senti imersa ali, por inteiro, e fui feliz. É um livro bem diferente, que eu não saberia classificar. Não sei dizer o que me fisgou, nem se é uma recomendação que agradaria muita gente. Mas estou apaixonada pela Leanne.
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