Newsletter - 22/08/25
- Lívia Vitenti
- 22 de ago.
- 3 min de leitura
Trilha sonora dessa edição: Oomingmak, Cocteau Twins
Salve, salve,
Minha newsletter dessa semana será um pouco diferente. Estou testando outros formatos e para hoje decidi trazer para vocês a resenha do livro Cometierra, de Dolores Reyes, lançado em 2019 pela Editora Sigilo.
Quando ganhei esse livro, não foi uma grande surpresa. Sempre recebo como presente livros de autoras argentinas. Mas o que motivou o presente, sim, me fez refletir: se trata de um livro contra o qual o atual governo argentino empreendeu uma forte campanha de depreciação e censura, fazendo inclusive com que a obra fosse retirada de bibliotecas públicas e escolares.
Por que uma vice-presidente de um país gostaria de censurar um livro, que para todos os efeitos denuncia violência contra a mulher? Era essa a minha pergunta, porque antes de ler o livro, era isso que sabia sobre ele. Ademais, Dolores Reyes, a autora, faz parte dessa geração de escritoras argentinas que aborda o feminicídio como um tema central de suas obras. Em seus contos e novelas, elas procuram dar visibilidade à violência de gênero e suas consequências, através de diferentes estilos literários.
Entretanto, me deparei, sim, com um livro de denúncia, mas também com uma obra que fala do controle que uma mulher pode ter sobre seu corpo, seu desejo e seu gozo. Já voltarei para esse aspecto da novela. Quero antes me aprofundar na forma como Dolores Reyes escreve, e sua maneira de trazer o realismo mágico para a história que está contando.
Cometierra, a personagem principal, é uma jovem mulher que descobre carregar em si uma habilidade inusitada: ao engolir punhados de terra, ela consegue vislumbrar cenas relacionadas à pessoas desaparecidas, geralmente mulheres. Tal habilidade é apresentada ao leitor de forma direta, sem explicações sobrenaturais grandiloquentes, e é o que estrutura a narrativa. Reyes tem como ambientação de sua história uma comunidade marcada pela violência e pela impunidade. O linguajar de Cometierra é direto, carregado de gírias, seco. A terra que ela deverá comer é geralmente deixada em garrafas, que se acumulam e se afundam na entrada de sua casa. Ela escolhe quando e de qual garrafa irá consumir o conteúdo. O restante fica esquecido, soterrado.
Ao comer a terra, a narradora do livro nos trás a perspectiva das vítimas, quase sempre mulheres. Quase todos os crimes são de feminicídio. Como uma mediadora involuntária entre vivos e mortos, a narradora traduz fissuras de uma realidade marcada por violências persistentes e frequentemente silenciadas. Uma realidade que vivemos no presente, no cotidiano, no Brasil, na Argentina.
Mas na novela encontramos algo mais: a protagonista, ainda jovem, se permite ter prazer também, e se permite gozar. Todas as cenas de sexo presentes no livro falam de relações não só consentidas, como desejadas. Mas a vice-presidente argentina Victoria Villarruel entendeu isso como pornografia. Logo o que deveria ser destacado como relevante, a denúncia contra as violências de gênero, se faz apagar justamente pelo impulso de controle sobre os corpos femininos.
Cometierra é, portanto, uma narrativa que põe uma lente de aumento para enxergar as mazelas de uma sociedade, sobretudo no que diz respeito à violência de gênero. Se Reyes conversa com o realismo mágico, o faz se afastando do maravilhoso para se debruçar sobre temas sombrios e urgentes. O território que ela adentra é perigoso, lamacento, violento. Se na tradição do realismo mágico latino-americano o insólito serve para nosso deslumbre, em Cometierra ele nos assusta. A terra engolida é terra de sepultura.
Até breve,
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