Newsletter - 21/03/25
- Lívia Vitenti
- 21 de mar.
- 3 min de leitura
Desobediência.

Trilha sonora para essa edição: Burn it Blue, de Elliot Goldenthal, com Caetano Veloso e Lila Downs
Salve, salve,
Desde quando eu desobedeço? Quando eu aprendi a desobedecer? Eu acho que sempre fui muito desobediente. Tenho memórias antigas da minha mãe me dizendo isso. Mas quem nunca aqui foi chamada de desobediente pela mãe ou por algum outro adulto responsável? No meu caso, a desobediência perdurou. Fui uma adolescente rebelde (novamente, segunda minha mãe) e uma jovem adulta cheia de certezas e audácia. Também tive que ouvir do meu pai que eu era “ambiciosa demais”.
É claro que eu me pergunto, desde que comecei a ler Michel Foucault e Judith Butler, se essa “desobediência” tão facilmente detectada em mim não era mais do que o entendimento dos outros sobre a minha dificuldade de me adequar a um determinado padrão de beleza e comportamento. Não me entendam mal, eu sempre tive tendência a engordar e por muito tempo tentei ter um corpo que, hoje eu sei, não é possível para mim. Mas talvez por ter sempre me achado bonita, o projeto de emagrecimento nunca era mantido por muito tempo. Principalmente depois que li a teoria dos corpos dóceis, em Vigiar e Punir. A palavra docilidade me dá arrepios, e se há algo profundamente ancorado em mim, é minha vontade de não me saber dominada, controlada, principalmente pelo desejo do outro. Isso é fortaleza? Não sei, às vezes é só um modo de sobreviver mesmo, principalmente a esse desejo mal-direcionado, à essa projeção, à incapacidade que algumas pessoas têm em entender que podemos ser felizes, e livres, sem estar necessariamente se preocupando com o julgamento alheio.
A frase “sobreviver ao desejo” soa estranha. Mas sim, às vezes o desejo do outro, quando mal direcionado, pode ser muito violento, e escapar dele é efetivamente uma forma de manter-se sã. Aconteceu poucas vezes comigo, mas já tive que escutar comentários não requeridos, de pessoas que mal conheço, sobre meu corpo. Que tenho o quadril largo demais, que se eu fizer natação minhas costas ficarão masculinas, que eu deveria tentar tomar água com bicarbonato e limão para alcalinizar meu organismo (oi?) e que deveria correr. Não parece nada demais, mas o que autoriza algumas pessoas a fazer isso? O desejo, justamente, a expectativa, a dificuldade de ver uma pessoa confortável em seu próprio corpo.
Só que essa newsletter não é sobre meu corpo, ou sobre meu peso. É sobre ser mulher e escritora em uma realidade que nos bombardeia com a ideia de ter um corpo padrão, ou melhor, um corpo ideal, e jovem. Pela idade, pelo gênero, pelo meu padrão de vida, recebo com uma frequência muito maior do que eu gostaria, propagandas sobre como emagrecer, como rejuvenescer e afins. Então pergunto - e ao fazê-lo me junto a um coro bastante numeroso - como podemos nos concentrar em escrever, produzir, ter prazer com as nossas paixões, e mesmo com as singelezas do dia-a-dia, se nossa cabeça está sendo ocupada com coisas que não nos pertencem. Com preocupações que não deveriam nos pertencer?
Sonhei que uma pessoa desconhecida me dizia que eu precisava pesquisar sobre os Guató. Se trata de um povo indígena que foi quase dizimado, que habita o pantanal matogrossense e é considerado o último povo canoeiro. Não sei quem me mandou esse sonho, mas seja quem for, quis que eu pensasse em um povo que, apesar de todas as dificuldades e horrores vividos, continua remando.
Me dei um prazo: até o final da primavera termino de escrever meu livro. Entendi, há pouco tempo, que seu mote principal é a desobediência. Então vou remar e desobedecer aos desejos que tentam me deixar incômoda e com a cabeça cheia de expectativas alheias.
E você? Quer vir comigo nessa e se concentrar naquilo que realmente te pertence?
Até breve,
Lívia
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