Newsletter – 12/04/24
- revistasarabatana
- 12 de abr. de 2024
- 4 min de leitura
Essa é a Newsletter da Revista Sarabatana, enviada semanalmente, sempre às sextas-feiras.
Trilha sonora para essa edição: Sería, Skúli Sverrisson
I
Essa noite eu sonhei que estava em uma festa com argentinos e brasileiros, em uma casa moderna, com uma fachada que se mexia e formava diferentes obras de arte. Era uma espécie de vernissage. Quando entrei, as muitas pessoas presentes estavam assistindo a um filme brasileiro. Me alegrei de ver que os argentinos não precisavam de legendas. Todos se entendiam como se as duas línguas fossem plenamente acessíveis a qualquer um. Uma fantasia que tenho.
Logo descobri que a casa era da jovem prefeita da cidade, uma brasileira meio hipster, que dirigia um carro dos anos 70 com o porta-malas cheio de jogos de tabuleiro e uma estranhíssima boneca antiga em tamanho quase real com uma vulva muito vermelha exposta. Era um recado para seus opositores. Um recado que eu não entendi.
Eu vagava entre as pessoas, procurando me encontrar naquele grupo. Mas a verdade é que eu não me encaixava. Nessa tentativa de dar sentido, decidi enviar um áudio a alguém para explicar onde eu estava e o que eu via ao meu redor. Uma necessidade de botar o mundo em palavras. Deve nascer daí a necessidade da escrita.
II
Desde muito pequena, é assim que vejo as coisas, em palavras. É preciso dar um sentido narrativo à vida, não para que ela seja apenas vivível, mas para que ela seja mágica. Aprendo numa rápida busca pelo significado da palavra mágica na internet que ela pode ser emparelhada com fantástica, ou com a arte do encanto. Não há forma mais bonita de definir o ofício do escritor.
III
Li no final de semana passado o livro Vinco, da Manoela Sawitzki, uma narrativa em primeira pessoa que se passa ao longo da infância, adolescência e juventude de uma personagem trans, ou que se divide entre um homem e uma mulher que ele guarda dentro de si. Uma mulher que precisa sair de tempos em tempos, que depende do corpo daquele homem, que, por sua vez, se esforça para dar vida a ela. É um livro delicado, bonito e triste. Me fez pensar muito sobre o desencaixe, sobre o ser estrangeiro em nós mesmos (e fora de nós). Sobre o que seria de nós se pudéssemos ser tudo o que somos em qualquer circunstância. É que me parece que sempre há uma dimensão nossa que escondemos do mundo, mas que é fundamental para sermos aquilo que somos. É para salvar essa dimensão que vivemos.
Como no meu sonho, é sempre assim que me sinto, meio que observando uma festa que não consigo entender completamente. Escrevo para tentar fazer sentido daquilo que vejo. Olho o mundo para encontrar as palavras que darão esse sentido. Vivo para narrar, mesmo que muitas vezes em silêncio, essa história que se desenrola dentro e fora dos meus olhos. E me pergunto porque é que demoro tanto para deixar que a escritora seja minha principal versão. Talvez como Manu, personagem principal de Vinco, eu ainda precise viver nesse interstício, até que a escritora seja tudo o que se pode ver. Oxalá.
IV
Na última segunda, tivemos o privilégio de ver o eclipse total do sol, aqui em Montreal. Queria ter palavras para descrever a qualidade da luz. Um fino véu cinza parecia cobrir tudo o que eu olhava. O mais mágico é que esse véu parecia estar dentro dos meus olhos e não fora. As sombras formavam lindas meias luas de um amarelo esbranquiçado, esmaecido. Com os óculos especiais que distribuíram pela cidade para garantir que ninguém queimasse a retina, observei o movimento lento da lua cobrindo o sol laranja e luminoso. Laranja como sol se pondo, mesmo que fosse três da tarde. Os últimos segundos foram os mais impactantes para mim, quando restava só uma pequenina nesga de laranja insistindo em ainda iluminar o mundo.
Depois, escuro completo por não mais que um minuto ou dois. E os gritos das pessoas que, como eu, assistiam o espetáculo no parque.
Quando a lua seguiu seu caminho e o sol se fez de novo inteiro, os pássaros se puseram a cantar como se fosse o alvorecer.
Um pouco como o que eu sinto quando me permito ser vista como escritora.
V
A escrita do meu livro está mais lenta do que eu gostaria. Desde que publicamos a última edição da Sarabatana, em 30/03 (se você não leu, corre lá, ficou muito linda), me sinto meio esgotada. Os dias passam rápido e, quando vejo, fiz menos do que me propus. Mas sem cobranças, faz parte do processo. Espero poder em breve trazer novidades!
VI
No dia 25/04 vamos nos reunir para mais um encontro no nosso clube de leitura. Dessa vez, vamos discutir Olhos D’água, da Conceição Evaristo. Se você se interessar, basta acessar nosso site e preencher o formulário de inscrição. Não é preciso ter lido o livro todo, nem participar de todos os encontros. Basta aparecer!
É isso. Até já!
Anna
📚Além de Vinco, li Tradução da Estrada, livro de poesia da argentina Laura Wittner. Ando muito interessada em poesia e esse é um livro gostoso e fácil. De se ler em uma sentada. Recomendo!
📽Assisti a Anatomia de uma queda. Não entendi o hype. É um filme bem feito, com um ritmo quase angustiante, como é a própria história, mas não me parece memorável. Talvez esteja me faltando alguma coisa para entender melhor o que vem interessando as pessoas, já que não gostei do Pobres Criaturas também. Alguém me explica?
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