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Newsletter - 11/10/24

Atualizado: 18 de out. de 2024

A poesia muda a forma de enxergar a luz.


Trilha sonora para essa edição: Weightless, Alex Kozobolis



I


O rastelo desenha linhas perfeitas no chão do jardim. Tenho dó de pisar. Choveu muito nas 24 horas anteriores e os grandes blocos de pedra molhada parecem vivos. Alguns têm círculos perfeitos perfurados por um homem com muito domínio do instrumento que usou para cavar as pedras. Nesses, a água encheu os buracos até a borda e, agora, com a superfície imóvel, oferece um espelho para o céu nublado que cobre tudo. As pedras escuras vieram do Brasil, me diz a responsável pelo grupo de turistas que, comigo, visita o ateliê de Isamu Noguchi. Numa delas, cuidadosamente colocada no topo de um morro que ele mandou criar, mora o espírito do artista.


O Japão muda o jeito de olhar os detalhes.


II


A luz do sol reflete na superfície da água e bate no parafuso da janela da balsa, criando uma espécie de espiral dançante, que parte de pétalas concêntricas nascidas do centro do parafuso, no metal da janela. 


Na água, três peixes mortos boiam para me lembrar de que nada dura para sempre.


III


Um pássaro entra, por acaso, na foto do velho barco de pesca que não aparece direito no quadro. Para as pupilas encantadas, ele está muito mais perto do que na realidade física. 


A poesia muda a forma de enxergar a luz. 





IV


Em quatro dias, fará 49 dias que estou no Japão. Aqui (e no budismo da Terra Pura em que tomei refúgio), faz-se uma cerimônia após 49 dias da morte de alguém. 7 ciclos de 7 dias. Após essas 7 semanas, segundo a tradição, a pessoa já cumpriu todas as etapas e está pronta para o renascimento. Sinto mesmo que algo morreu para que eu renasça aqui.


Carrego comigo um novo olhar para o que não está no centro do quadro. O que fica é o gesto tímido e rápido de alguém na rua. A poesia das pequenas coisas cheias de significado. A sensação de que nada é em vão. Me permito usar aqui palavras proibidas. Nada nunca é em vão.





Na escrita, a palavra precisa, que apreende o sentido mais puro do que quero dizer, sempre me escapa. É preciso contornar, criar comparações, dizer do que sinto, mais do que daquilo que vejo. Será que há diferença? Percebo agora, escrevendo essa frase, que não existe separação entre o que sinto e o que vejo. Como a distância do barco, a poesia não vem de métricas exatas. Não a minha. É bom me libertar do supérfluo. Melhor ainda aceitar a importância da beleza. Ainda bem que existe o Japão em um mundo em que a praticidade se sobrepõe ao detalhe que traz sorrisos tímidos frente à inutilidade daquilo que faz tudo mais bonito.


Beleza não é supérfluo.


V


Ontem entrei no mar do Japão. Um batismo que desejei, mas que não imaginei que aconteceria. Hoje estamos nas montanhas que, aqui, recebem o honorífico san. Começo a entender as muitas reverências que os japoneses trocam entre si e com seus visitantes a cada vez que se cruzam. Uma forma de demonstrar ao outro a honra e a sorte que representa cada encontro.


Uma forma de ser presente.


VI


Para terminar, deixo o parágrafo inicial do conto Los nombres, da Alejandra Kamiya, do livro Los árboles caídos también son el bosque, que acabei há semanas, mas segue reverberando:


Hay muchas cosas que no tienen nombre. Ciertos momentos del día, como aquel rojizo entre la tarde plena de luz y la noche, ciertos gestos, ciertos ritmos, algunas partes del cuerpo, algunos colores como verdes que no son ni agua ni musgo.


Até breve!

Anna


📚Finalmente li Nem sinal de asas, da Marcela Dantés, com quem tenho tido ótimas aulas na pós em escrita criativa. O livro conta a história de Anja, uma personagem complexa, que Marcela criou depois de ler uma notícia sobre uma mulher que morreu em seu apartamento e cujo corpo só foi encontrado depois de anos. É um livro muito sensível.

 
 
 

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