Newsletter - 10/10/25
- Anna Davison
- 10 de out.
- 4 min de leitura
Escrever é a única coisa que me faz não sentir sono a maior parte do tempo.
Trilha sonora para essa edição: Your parting gift, Kita Kouhei
I
Dizem que é por causa da posição de Saturno no meu mapa astral que as coisas acontecem mais tarde para mim. Não sei até que ponto acredito ou não acredito nisso, mas não posso negar que demoro a perceber certas coisas. Como já comentei muitas vezes por aqui, passei tempo demais perseguindo uma vida que eu achava que era a certa para mim. Não porque eu assim intuía, mas porque eu assim pensava.
A escrita, como uma atividade que me define, veio tarde, mesmo que na adolescência eu adorasse escrever e que as aulas de literatura com o maravilhoso Feitosa fossem as minhas favoritas. Lembro de ter pensado em fazer jornalismo, para poder escrever, mas por vários motivos que não cabem aqui, enveredei por outros caminhos. Mudei de curso duas vezes na faculdade e acabei me tornando antropóloga, coisa que, no fundo, nunca fez muito sentido, ainda que fosse relativamente fácil para mim.
Digo relativamente fácil porque o olhar e o pensamento antropológicos, de algum modo, me pareciam vir com naturalidade. A escrita, por outro lado, sempre foi mais difícil, eu me julgo demais e nada parece bom o suficiente. Sofro para encontrar o meu formato que, suspeito, pressupõe algum grau de mistura com outras expressões artísticas que eu ainda não soube explorar.
II
Há umas semanas, fui a um evento da Vivi Tellas, de biodrama, centrado na leitura de textos em torno de fotos de família, como numa palestra-performance. Senti que era aquilo que eu queria fazer. Meu corpo me dá sinais muito claros, quando estou no lugar certo, é quase difícil não dar saltinhos, ou dançar no lugar. Tenho certeza de que sorri o tempo inteiro. Parecido com o que senti naquele pequeno templo budista no Japão que visitei há um ano (!).
Vivi Tellas lendo o trecho final de seu texto, com uma foto sua de quando criança ao fundo.
Mas no dia seguinte, tudo volta ao normal, não consigo ter a energia e o ímpeto para começar a estudar, ou a escrever, ou a produzir o que quer que seja. Faço, mal-mal, o trabalho que paga as contas e me perco nas redes sociais a maior parte do meu dia.
É desesperador.
III
Escrever é a única coisa que me faz não sentir sono a maior parte do tempo.
Quando escrevo, perco a noção das horas, da fome, da temperatura. Mas, como disse outro dia por aqui, resisto. Comparo meus poemas com outros poemas, minhas tentativas de ensaio (sim, eu sei que isso soa redundante) com outros ensaios, e a minha autocrítica não me permite achar que qualquer parte daquilo faz sentido. Sem contar a expectativa de que minha escrita, ou eu, se é que é possível separar, se torne alguma coisa no mundo.
A pergunta que fica voltando é: será que tenho medo do sucesso ou do fracasso? Ao que respondo com outra pergunta: será que eles, nesse caso, não são a mesma coisa?
IV
Há umas noites, quando fechei os olhos para dormir, vi dentro das pálpebras um estremecimento, como se meu globo ocular estivesse tremendo, ou eu estivesse tendo uma daquelas distorções visuais que precedem uma enxaqueca, mas com os olhos fechados. Tive medo, primeiro, mas depois comecei a observar meu corpo e o que aquilo estava querendo me mostrar. Não posso ter certeza, é claro, mas me pareceu que era preciso parar de conter, de me conter. A sonolência diurna me pareceu ser uma resposta física à tentativa mental de controlar o que mostro de mim. Daí, resolvi escrever essa carta assim, sem filtros, como se fosse uma forma de escrita terapêutica.
Foi de escrever assim que nasceu meu primeiro livro e, desconfio, é assim que vão nascer os próximos. Sim, porque acredito piamente que hei de conseguir terminar outros livros.
Assim como sei que hei de voltar àquele pequeno templo no Japão.
V
Fiz um curso com o Schneider Carpeggiani sobre ensaios e, logo na primeira aula, surgiu a ideia de se pensar o ensaio como performance. Tudo parece confluir para que essa seja a resposta para minha forma na escrita: ensaio/poema/performance. Uma forma híbrida e fluida, como não consigo ser com meu corpo ou minhas escolhas na vida.

Templo Budista com altar para Ganesha. Hida Takayama, Japão, Set/24.
Então, te deixo uma proposta, inspirada na Yoko Maravilhosa Ono:
1) Deite-se em um lugar confortável
2) Feche os olhos
3) Aperte ligeiramente as pálpebras e logo as relaxe
4) Observe com atenção o que você vê dentro delas (cores, formas, padrões, movimentos)
5) Anote com cuidado e de forma detalhada todas as formas que você vê, como se fosse um poema.
6) Leia em voz alta (para si, ou para outrem)
É isso!
Beijos,
Anna
📚Li o necessário Volverse Palestina, da Lina Meruane, chilena de origem palestina. Aprendi muito sobre a região e o sofrimento do povo palestino. Recomendo.
📚Li também O que é meu, do José Henrique Bortoluci, em que ele faz um ensaio sobre o Brasil dos anos 70 e 80, enquanto acompanha o pai, um ex caminhoneiro, durante um tratamento de câncer. É um livro interessante, com relatos crus e potentes, mas a análise sociológica me pareceu algo cansativa.
Beautiful.