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Newsletter - 08/11/24

Sonhos não são como algodão doce.



I


É engraçado como viver os sonhos não parece com algodão doce. 


Desde que me entendo por gente, desejo viver em outros lugares, desbravar outras culturas, queimar a língua com pratos apimentados e exóticos, enquanto me comunico de jeitos diferentes do que aprendi em casa. Há 3 anos, isso se tornou realidade. Estou no sexto país do ano (e ainda estarei em, pelo menos, mais dois). Ontem chegamos a Kuala Lumpur, depois de três semanas no Vietnã.



Estou feliz, mas já não tenho o mesmo ímpeto de desbravar. Pesquiso cada vez menos o que “não posso deixar de ver”, quando chego a um novo lugar. O que quero mais é viver uma rotina que me permita trabalhar. Sinto saudade do familiar (mesmo do que eu não gosto em casa). Busco referências compartilhadas, alguém que entenda minhas piadas, que saiba falar com os mesmos sons.


Posso ficar só com as comidas diferentes?


II


No meio disso tudo, ando repensando muito o que é esse trabalho que quero fazer. Estou cada vez mais certa de que não é o atual trabalho que paga as contas. Quero viver de palavras. Ler, escrever, editar. Me rodear de literatura, daquilo que faz o meu jeito de olhar o mundo ser especial.


Recebi um retorno sobre uns poemas meus avaliados pela Marcela Dantés e me emocionei demais. Ela me fez sentir que tenho uma forma minha de ver as coisas e de usar as palavras que merece ser mais protagonista do que tenho permitido. Discuti isso em terapia e a conclusão é que me escondo atrás do trabalho que paga as contas. Agora preciso entender porquê.


III


Vaguei pelas ruas cheias de scooters e sons de buzinas do Vietnã, tomei banho no mar do sul da China, ri enquanto tentava pronunciar um mero obrigada. Mas será que me mostrei? Em que medida esse desejo pelo exótico não vem também da vontade de me esconder, como quando eu ficava vendo o dia acabar na janela até que tudo fosse só escuro?


Queria poder tocar o fundo das coisas, o que quer que isso queira dizer.


Que lindo seria o mundo se todos nós pudéssemos (ou conseguíssemos) mostrar nossas verdadeiras formas, diferentes de todas as outras formas, também diferentes entre si, né?



IV


O problema é que estar nesse estado me faz escrever pouco, ler pouco, olhar pouco.


Tá, talvez olhar muito. 


A questão é que, quanto mais quero, mais me assusto e menos faço. mais vagueio pelas ruas e observo as coisas se desenrolando de longe. 


V


Na última noite no Vietnã, em Da Nang, fui a um brechó. Era 7 da noite, depois de uma tempestade tropical. Na sala de uma casa de dois andares, estavam meia dúzia de araras, com tantas roupas espremidas que era difícil ver a oferta. Do fundo da sala, veio um hi!, numa voz pequena. Era um menininho de não mais de dois anos, só de camiseta. A cabecinha raspada e a carinha sorridente, rodeada de mais quatro crianças entre 13 e 5 anos. Uma mulher jovem apareceu e se apressou em cobrir o menino, que estava nu da cintura para baixo.


Vi se desenrolar ali os mecanismos que nos fazem esconder tantas coisas ao longo da vida. Quis poder dizer que tudo bem, que eu não estava olhando, que ele era tão pequeno para ter que se preocupar com isso. Mas tudo o que fiz foi achar um vestido para comprar.


VI


Para animar um pouco essa newsletter, deixo um poema do meu livro, que (agora é verdade) está prestes a sair: 


paraíso 


um gole do café quente e amargo limpa a retina 

talvez seja isso a saudade 

aquilo que faz o paraíso inalcançável 

vejo barcos ao longe meu vestido amarelo 

chove 

e sei que me visto de preto 

ainda nos ouvidos o som da areia sob as águas do mar 

ossinhos que se chocam 

flutuo 

caio 

não faz diferença 

estou no paraíso 

quanto mais aperto a areia grossa mais ela me escapa 

dói como o café no estômago vazio 

meu próprio claro meu próprio escuro 

eu sou o paraíso 

a cabeça dói levemente enquanto fervo 

água para o café 

lembro da sensação da areia grossa 

sendo apertada nas mãos


[minhas mãos] 


flutuo como se ainda estivesse na água



É isso!

Até breve,

Anna


📚Terminei Nevada, da Imogen Binnie. Gosto do fato de que o livro traz personagens trans de um jeito bem diferente do habitual, mas não me encantei. 


📚Li Holograma, da Mariana Godoy. Amei. Ela escreve poesias tão despretensiosas e, ao mesmo tempo, tão lindas. O livro é uma elaboração do luto pela perda do pai, a partir de memórias, nem sempre bonitas, da vida. Recomendo demais!

 
 
 

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