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Newsletter 07/06/24

Essa é a Newsletter da Revista Sarabatana, enviada semanalmente, sempre às sextas-feiras.

Trilha sonora para essa edição: Falta uma parte, Pablo Araújo e Bill Davison

I

Há umas semanas venho percebendo que todas as vezes que me magoo, me irrito, ou me frustro, sinto instantaneamente dor de garganta. Instantaneamente. Na base da garganta, naquela parte mole onde se fazem as traqueostomias. De tanto engolir lágrimas, o sal se concentrou ali e agora sinto arder. Também funciona como uma espécie de sinal vermelho para que eu escolha melhor minhas batalhas. Me convida a respirar antes de falar.

Há uns anos, tive um colega de trabalho que, ao sair do órgão em que trabalhávamos, me deu de presente uma trena. Disse que era para eu medir minhas palavras.

Agora carrego a trena na forma de uma lareira na base da garganta.

II

Gosto de perceber reações no meu corpo. Sou muito mental e qualquer pequena mudança no equilíbrio corpo/mente me intriga.

Desde criança sou rápida de raciocínio, mas lenta de movimento. Como devagar. Ando devagar. Pedalo mais devagar que as velhinhas andando nas calçadas e me ultrapassando. Pelo menos nas subidas! Isso gera um certo desequilíbrio na hora de escrever. É que as mãos não acompanham os pensamentos. Foi por isso que passei a digitar meus textos, ao invés de escrever em um caderno. Assim sou mais rápida. Mesmo que isso faça muito do romantismo evaporar.

Quando comecei a escrever qualquer coisa além dos meus diários, usava lápis. Como se uma hesitação, que anos depois me seria apontada em um dos meus textos, fosse materializada na forma de uma escrita que pudesse ser apagada.

III

Também peço muitas desculpas.

Não tenho dificuldades em me aperceber dos meus erros e de me desculpar por eles. O problema é que essa característica vem acompanhada de um desejo imenso de agradar, o que, por sua vez, leva à quase incapacidade de dizer não, ou de demarcar meus limites e necessidades (é bem verdade que meu companheiro discordaria dessa afirmação, mas isso seria uma outra história). Fato é que acabo me deixando levar em excesso pelas opiniões dos outros. Reais ou criadas pelo meu próprio cérebro. E nesse processo, muitas vezes, me perco.

IV

Essa semana passei por uma situação delicada com uma pessoa com quem tenho trabalhado minha escrita. Me dei conta de que fui me deixando conduzir demais em uma dança em que eu deveria ter sido a guia. A tal ponto, que, por um triz, não perdi o livro que estou escrevendo. Fui acatando as sugestões sem muito pensar e, quando vi, já não sabia mais para onde seguir. O tema do livro virou outro sem que eu me desse conta. E com minha concordância expressa!

Não tem nada a ver com ela, ou com as sugestões, muitas vezes brilhantes, que ela me fez. Tem a ver comigo. Com a dificuldade de me conectar com meus desejos e de defender os caminhos que escolhi. Mesmo que, no mais das vezes, noto agora que escrevo, não seja nem necessário defender, bastaria que eu estivesse suficientemente conectada com o que quero, de modo a seguir a rota que me parecesse mais minha.

Só de lembrar, acendo a pequenina chama na base da garganta. Ela também é, vejo nesse instante, um farol para iluminar o que sai da minha garganta. Ou o que fica guardado em algum lugar entre os intestinos e o crânio. Subindo pela medula.

V

Escrever é também se deparar com mudanças não intencionais. O texto ganha vida própria, vai se transformando à medida que se escreve. É um processo lindo. Às vezes tão rápido que tenho medo de não conseguir anotar o que está surgindo. Outras, muito lento, como as danças que fazíamos no fim dos anos 80 em algum apartamento do Plano Piloto de Brasília. Quando éramos tiradas para dançar, as amigas sempre nos perguntavam se estávamos namorando. Era o aparecer de alguma emoção que ainda não conhecíamos e tudo parecia grande e intenso. E não, normalmente, não estávamos namorando.

De todo modo, escrever é muito isso, dançar com nossas próprias ideias. Nos apaixonar com elas (me permitam o mineirês proposital), conhecer sentimentos que nem sabíamos que existiam. Criar novas rotinas e novos gostos. Nascer de novo com cada texto. E é por isso que, mesmo que haja muito de coletivo no nascimento de um livro, é preciso reconhecer também que uma enorme etapa solitária precisa se desenrolar entre nós e nossas palavras. É preciso dar uma sumida, como tende a acontecer quando começamos um novo relacionamento. Não podemos pensar demais no que os outros vão achar, nem acatar sugestões sem antes termos entendido bem o que sentimos e o que queremos dessa nova história.

VI

Sinto como se estivesse vivendo uma crise importante no meu relacionamento com minha face escritora. Logo depois de passar semanas encontrando o lugar que ela ocuparia na minha vida, percebendo que ela é mesmo grande e precisa de espaço. Mas, ao pensar em acolher a crise e lembrar do ensinamento da minha mãe de que relacionamentos que superam crises se fortalecem, sinto um alívio bem grande. 

Ontem revi Paterson, do genial Jim Jarmusch. A última cena, em que a personagem principal nega ser poeta – não sei se por ter apenas perdido tudo o que já tinha escrito, ou por não se ver assim mesmo (é que leva tempo se pensar escritor, ainda mais quando ainda não se tem uma publicação) – para logo em seguida, ganhar um caderno de um estranho e imediatamente escrever um poema, me fez ver, de novo, a beleza de recomeçar.

Me sinto mais perto de me reencontrar no meu texto!

VII

Para fazer como Paterson, deixo um poeminha:

Comprei um cartão para enviar a mim mesma
De fundo laranja e com desenhos a lápis
Como meus primeiros passos na escrita
Uns óculos redondos desenhados
Como se estivessem em movimento
[(Ver)
Os espetáculos (as lentes)
Tentar. Ver. Clarear] 
Os rodopios de dança que me levam
De volta para casa
 

Até breve!

Anna

📚Terminei de ler o Changer: méthode, do Édouard Louis. Realmente muito bom.

📚Estou corrigindo uma falha na minha formação e lendo Rachel Cusk pela primeira vez. Comecei por um romance, Outline, em que ela conta histórias de pessoas que ela encontrou em uma viagem a Atenas para dar um workshop de escrita. É um livro de muitas camadas. Me chama atenção (e desperta desejo) a capacidade de escuta. Agora quero ler um dos livros dela de não-ficção.

📽Assisti a Paterson de novo, como disse ali em cima. Que encanto! Como dias perfeitos, esse é o tipo de filme que me move. Me afeta. Me emociona. Acho mesmo muito especial perceber a beleza do cotidiano. Das rotinas. Do amor que se constrói (também) nas diferenças.

🎧Saiu um EP novo do meu irmão, Bill Davison, que é um flautista incrível, com o também incrível cavaquinista Pablo Araújo. Apenas ouçam!

 
 
 
 

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