newsletter - 07/03/25
- Lívia Vitenti
- 7 de mar.
- 4 min de leitura

Trilha sonora para essa edição: In the Steppes of Central Asia: Allegretto con moto, Alexander Borodin
Salve, salve,
Confesso que essa newsletter quase não sai. Ando desinspirada, muito ocupada, chateada com o clima e com uma sensação constante de que vou ficar resfriada a qualquer momento (não fico nunca). É o cansaço do frio do Québec, é a idade, é ser uma igual entre todas as pessoas à minha volta, todas sentindo e reclamando. E isso afeta meu entusiasmo para escrever.
Quando eu era mais nova, qualquer céu cinzento já empolgava a poeta que vive dentro de mim. Sentava de frente para a janela do meu quarto, olhava as nuvens carregadas e dá-lhe escrever. Nessa época, eu achava que o que me inspirava era o friozinho que se instalava, a vontade de ficar sozinha, o barulho da chuva. Afinal, chuva é ruído branco também. O que eu não sabia, e que aprendi por conta desse destino que me quis (ele quis, eu quis?) vivendo em um lugar no qual o inverno dura uns 6 meses, é que o que me inspirava era sim o chamado à introspecção e à melancolia que me chegava com o prenúncio da chuva, mas era também a certeza de que aquele momento passaria, e passaria rápido. Saber que ia chover, para essa candanga aqui, significava me preparar para entrar em um outro estado de ânimo, em um outro universo, onde tudo parava um pouco para que eu pudesse escrever.
Outro dia escrevi o seguinte: “na ilha onde vivo o asfalto esquenta. O cheiro que sobe é conhecido. Fora do ônibus, pessoas trabalhando. Barulho de obra e cheiro de piche. Faz 40 °C, uma música que só eu posso ouvir começa e abre outra existência.” Então é isso, a chuva, assim como a música, abre outras existências. E o irônico desse trecho é que eu me referia justamente a uma onda de calor que estava se abatendo sobre Montreal.
Daí vocês podem argumentar: quer dizer que o verão volta, que o inverno é tão passageiro quanto a chuva. Sim, mas o frio cortante, perigoso, quando se instala, se faz muito presente, sem deixar que ninguém duvide do seu poder. Para mim é especialmente angustiante saber que ele é mais rigoroso quando o céu está azul e o sol está brilhando. Quando toda a natureza parece dormir, mas o sol tá lá, lindão, clareando o céu, e nada mais. Sim, o inverno passa, mas demora.
Às vezes tenho vontade de encarnar o Maiakóvski, mas ao invés de gritar insultando o sol, gritar ao inverno que venha à casa tomar um chá comigo. Mas tenho medo que, tal qual no mito innu, o inverno, travestido em um senhor vestindo uma pele de lobo branco, realmente bata à minha porta e me pergunte se eu não quero deixar minhas queixas de lado e me fazer amiga dele.
Me amigar ao inverno talvez seja a resposta para a angústia que ele me provoca: a introspecção forçada, duradoura. Entender que não convivo mais com aquela existência efêmera trazida pelas nuvens carregadas, mas que ainda assim sei que tudo vai se findar e recomeçar. Talvez tenha que me saber dormente como a natureza, mas com a certeza de que a inspiração, assim como o verão, volta.
Deixo abaixo um trecho da poesia de Maiakóvski.
Até breve,
Lívia
(...) E grito ao sol:
Espere!
Ouça, topete de ouro,
e se em lugar
desse ocaso
de paxá
você baixar em casa
para um chá?
Que mosca me mordeu!
É o meu fim!
Para mim
sem perder tempo
o sol
alargando os raios-passos
avança pelo campo.
Não quero mostrar medo.
Recuo para o quarto.
Seus olhos brilham no jardim.
Avançam mais. Pelas janelas,
pelas portas,
pelas frestas
a massa
solar vem abaixo
e invade a minha casa.
Recobrando o fôlego,
me diz o sol com a voz de baixo:
‘Pela primeira vez recolho o fogo,
desde que o mundo foi criado.
Você me chamou?
Apanhe o chá,
pegue a compota, poeta!’
Lágrimas na ponta dos olhos
– o calor me fazia desvairar, eu lhe mostro
o samovar:
Pois bem,
sente-se, astro!
Quem me mandou berrar ao sol
insolências sem conta?
Contrafeito
me sento numa ponta
do banco e espero a conta
com um frio no peito.
Mas uma estranha claridade
fluía sobre o quarto
e esquecendo os cuidados
começo
pouco a pouco
a palestrar com o astro.
Falo
disso e daquilo,
como me cansa a Rosta,
etc.
E o sol:
Está certo,
mas não se desgoste,
não pinte as coisas tão pretas.
E eu? Você pensa
que brilhar
é fácil?
Prove, pra ver!
Mas quando se começa
é preciso prosseguir
e a gente vai e brilha pra valer!
Conversamos até a noite
ou até o que, antes, eram trevas.
Como falar, ali, de sombras?
Ficamos íntimos,
os dois.
Logo,
com desassombro
estou batendo no seu ombro.
E o sol, por fim:
Somos amigos
pra sempre, eu de você,
você de mim.
Vamos, poeta,
cantar,
luzir
no lixo cinza do universo.
Eu verterei o meu sol
e você o seu
com seus versos.(...)”
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