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newsletter - 07/02/25

Trilha sonora para essa edição: Danse macabre, Camille Saint-Saëns


Salve, salve,


Eu ia muito visitar minha avó e minha tia em São Paulo durante a adolescência. A vó Avelina ficou quase totalmente cega, por causa de um glaucoma, e era muito difícil para ela viajar. Elas moravam em um apartamento minúsculo, mas muito bem localizado, perto do trabalho da minha tia, perto da Vila Madalena e relativamente perto da praça Benedito Calixto. 


Para a Lívia adolescente - e diria que até para a Lívia de 20 e poucos anos - ir a São Paulo era mais que visitar elas, era conhecer todos os bares, ir às livrarias badaladas, às exposições recomendadas, enfim, mergulhar nessa ideia, deveras fantasiosa, que São Paulo é o lugar para se nutrir do que está sendo produzido em termos de arte, no Brasil. 


Em umas dessas viagens, calhou de conhecermos, eu, minha irmã e minha prima, alguns integrantes da banda Karnak (não, o André Abujamra não tava…). Não me lembro do contexto, mas me lembro bem de ter desdenhado de uma música que tocava. Tinha começado muito bem, com tambores e vocalização, mas na minha expectativa, em alguns segundos entraria uma batida de música eletrônica, e estragaria tudo. Sim, na época eu odiava música eletrônica, aprendi a gostar com o tempo. Qual não foi a minha surpresa ao notar que a música seguia no mesmo estilo, e que era realmente linda! A banda era Dead Can Dance e a música era The Host of Seraphim. Até hoje é uma das minhas bandas xodó, mas o nome dela diz que os mortos podem dançar. Os mortos, dos quais não podemos falar, não podemos animar, não podemos acompanhar em um pas de deux. 


Eu gosto muito desse nome. Mas muita gente não. E muita gente me pergunta porque eu ouço uma banda com esse nome. Porque não podemos falar dos mortos, não podemos evocá-los. Há o risco de contaminação, há o perigo da permanência deles em um mundo que não lhes pertence mais. E há a tristeza que os acompanha, e a certeza de que um dia nos uniremos a eles. De fato, a danse macabre, também chamada a dança da morte, foi um gênero artístico muito explorado na Alta Idade Média, produzido como memento mori, justamente para lembrar as pessoas de que a vida é passageira e frágil, e que ao morrermos, somo todos iguais.



"A Dança da Morte (gravura de Micheal Wolgemut, xilogravura em Crônica de Nuremberg de Hartmann Schedel, 1493).
"A Dança da Morte (gravura de Micheal Wolgemut, xilogravura em Crônica de Nuremberg de Hartmann Schedel, 1493).

Estou lendo Cometierra, da autora argentina Dolores Reyes. O livro é sobre um horror: o desaparecimento de mulheres. É sobre dois horrores: o desaparecimento resultante de um feminicídio. No livro as mortas não dançam, mas falam, e falam alto. Cometierra vê, ouve e encontra mulheres desaparecidas. E sobre essas mortas devemos falar, embora não seja tão fácil assim. E não tão bem aceito. Na Argentina quiseram proibir o livro, argumentando que as descrições das cenas de sexo eram muito explicítas para estudantes de ensino médio. Eu desconfio desse argumento. É muito mais perigoso deixar que adolescentes saibam que mulheres são assassinadas somente por serem mulheres, que ler a descrição de um ato sexual consentido, no qual a mulher teve prazer e gozou. É, pensando bem, pode ser que isso seja perigoso também. 


Eu sempre me senti atraída por tudo que fale sobre distorção, excesso. Tudo que nos leve a esse lugar onde o estranho e o familiar interagem, nos deixando entrever até onde se pode ir com o desafio às normas sociais, aos limites e ao que suportamos de transgressor. Porque é sobre transgressão que estou falando. É sobre livros como Cometierra, que falam de temas que nos revoltam, que temos que encarar, ainda que a vontade seja de sair correndo deles. E é sobre a linguagem subversiva também. Nada no livro de Dolores Reyes nos remete às normas cultas da literatura, e isso é perfeito para entrar na cabeça da personagem principal. 


Quando escrevo sobre o que eu considero terrível, repulsivo, revoltante, tenho alguns propósitos: desestabilizar, provocar, fazer refletir. Gosto de pensar que a literatura tem esse poder de transformação sim. Eu sei, é difícil, não é um gênero muito aceito e há que se tomar muito cuidado ao explorá-lo. Mas o venho fazendo, e temas como estupro, desaparecimento e feminicídio têm aparecido de forma muito natural nos meus escritos. Não sofro ao escrever sobre coisas horríveis, percebo que sempre há uma centelha de esperança ao final das histórias.


Até breve,


Lívia 

 
 
 

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