newsletter - 05/09/25
- Lívia Vitenti
- 5 de set.
- 2 min de leitura

Trilha sonora dessa edição: Dor Elegante, Itamar Assumpção, Juçara Marçal
Normalmente não trabalho no escritório às sextas-feiras. Reservo segundas e sextas para ficar em casa, usar meus momentos menos ocupados para trabalhar em projetos pessoais ou descansar. Só que a última sexta foi diferente. Tive que ir ao escritório. Não tinha preparado meu almoço e resolvi comprar alguma coisa num supermercado perto da universidade, que fica do lado de uma grande praça, frequentemente usada, no verão, para apresentações de música, teatro e circo. Ao passar pela praça percebi que a pessoa que se preparava para tocar era uma estudante wendate da universidade onde trabalho. Os wendat são um povo originário do Quebec, um dos primeiros a passar pelo processo de assimilação forçada. Hoje eles têm um belo movimento de reapropriação identitária. Malorie faz parte desse movimento.
Nós nos conhecemos bem, então parei para cumprimentá-la e resolvi ficar para acompanhar sua apresentação.
Malorie é uma mulher um pouco mais nova que eu. Foi mãe muito jovem, e quem a acompanhava na guitarra era justamente seu filho. Ela resolveu estudar piano por conta própria, com seus já 35, 36 anos, e começou a musicar suas poesias. Sua grande inspiração é Patti Smith. Ela sabe que é indígena, por causa do seu sobrenome e por ter a carteira de indígena (coisa da política assimilacionista canadense, uma discussão à parte). Mas a grande dor dela é nunca ter vivido na comunidade, não saber falar a língua e ser discriminada por pessoas de outras nações indígenas.
Malorie convive com muitas angústias, muitas dúvidas. Sua música expressa isso. Ao pensar em sua avó wendate, ela canta que suas plumas são seus carinhos. E que é só isso que existe, além de um cemitério de elefantes na sala. Não há território, não há cantos nem tambores. Mas há memória e persistência. Ela porta um sobrenome, e continua, ferrenha, a buscar o seu lugar no mundo. Indígena e não índigena.
Quando canta, Malorie grita. Quando declama, Malorie sofre. O piano é barulhento e a guitarra distorcida. É bem evidente seu amor pela Patti Smith.
Penso que essa mulher está fazendo algo extraordinário, por ela mesma. Ela vai com medo, eu sei, mas ela vai. Ela traça o próprio caminho com uma força interna e solitária, mas muito verdadeira.
Eu estava feliz nesse dia. Pensava na beleza da coincidência e em como eu gostaria de falar sobre ela com a Anna. Uma mulher tão parecida a nós, mas tão alheia ao mesmo tempo. Seria uma conversa interessante, que se desdobraria em temas como nossas escritas, nossos anseios, nossos projetos.
Só que o vento soprou uma lata nos meus pés, e eu percebi que ela estava furada justamente no código de barras. Fiquei triste, porque, por aqui, uma lata sem código de barra não pode ser vendida. Fiquei pensando na maldade que leva alguém a furar uma lata bem no único lugar que a faria se transformar em algumas moedas para uma pessoa necessitada. Ou será que foi só uma infeliz coincidência?
Uma mulher que canta, uma lata furada, duas presenças e duas faltas.
Até breve,
Lívia
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