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newsletter - 03/10/25


Aaron Cohen, Canadian Museum for Human Rights
Aaron Cohen, Canadian Museum for Human Rights

Trilha sonora dessa edição: A Mulher do Fim do Mundo, Elza Soares


Eu não sou um mito, eu sou a continuação do mundo. 


Essa frase é de Joséphine Bacon, a poeta innue da qual já venho falando há um tempo com vocês. É uma frase que faz todo o sentido para a realidade dos povos indígenas. Mas, para mim, por que ela é tão impactante? 


Ela é tão impactante que a coloquei no meu próximo livro, que pretendo terminar ainda esse ano (estarei sendo realista?). Na minha história, a personagem principal é a continuação de um mundo determinado, o mundo dela. É que no caso dela, faz sentido que eu me refira a um universo particular, já que ela é também, mito. Mito e mulher, desse e de outro mundo. 


Muito inspiradora mesmo, essa ideia de não se deixar ser desaparecida. É o que as lutas indígenas daqui e de muitos outros países fazem, o de lutar por uma existência plena. Só que nessa segunda-feira uma outra frase me pegou fundo: se eu não existo, por que lutar? 


Eu estava acompanhando uma mesa redonda que organizamos para enfatizar os 10 anos da publicação do relatório final da Comissão da Verdade e da Reconciliação, comissão que apurou os crimes cometidos contra as famílias indígenas durante os anos das escolas residenciais, instituições instaladas pela Coroa e pela igreja católica para forçar a assimilação de crianças indígenas, aqui no Canadá. A história é longa e vale a pena uma pesquisa, para quem se interessar. Mas meu ponto hoje é outro: como, num mesmo contexto, uma pessoa afirma ser a continuação do mundo e a outra pensa em desistir de lutar, porque não existe? 


Recentemente publiquei um livro de contos. Um deles é sobre uma menina que desaparece, logo após sofrer uma grande violência. Até agora, ao escrever isso, me custa admitir que tal violência, é na realidade, um estupro. É um assunto delicado, eu sei, e de difícil abordagem. Inclusive, poderia até abrir uma discussão sobre se livros deveriam vir com “disclaimer”, e já adianto que acho que não, não deveriam. Já li muitos livros, bons e ruins, que falam de suicídio, infanticídio e muitas outras violências, e eu acredito que com um pouco de interpretação de texto, a gente já consegue adiantar que algo nesse sentido acontecerá na história. Mas, como disse, poderia abrir a discussão. Novamente, meu ponto é outro. É sobre como contar uma história, e não sobre se devemos ou não contá-la. 


Evidente que não existe um jeito certo ou errado de criar narrativas. O mundo literário é vasto e abarca um sem número de percepções, perspectivas e expectativas. Quem será o meu público, se o que eu escrevo agrada, ajuda, interpela ou repele, são coisas que não podem ser antecipadas. O que eu sei é que violências existem, tabus existem. Muitos podem e devem ser quebrados, justamente para explicitar a violência.


Às vezes temos a sorte de poder aprender a lidar com os traumas. Eu tive a sorte não só de aprender, mas também de escolher como lidar com as violências que eu sofri. E com as interdições de falar sobre isso. Tenho entendido - e por isso também é tão importante ler mulheres escrevendo sobre violências contra mulheres - que quanto mais se fala, mais a interdição vacila, tropeça, escorrega. 


Posso abordar temas difíceis, e sei que fiquei de fora de alguns concursos justamente por isso. Tudo bem, eu escolho continuar lutando, porque escolhi continuar existindo. E como Ilá, eu também sou a continuação de um mundo.


Até breve,


Lívia     

 
 
 

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