top of page

Newsletter - 02/11/24




Trilha sonora para essa edição: 


Salve, salve,


Quando adolescente, eu escrevia sem censura. Vejo minhas poesias e meus diários da época e percebo que até a letra era menos sofrida. Não era capricho, eu nunca fui das mais caprichosas. Minhas professoras e professores inclusive reclamavam da minha letra. Mas ao escrever poesia, pareceria que eu desenhava, embora eu não me lembre de prestar atenção nisso. Quando vejo em retrospectiva, penso que escrever ainda não doía. É estranha essa afirmação, mas às vezes, dependendo do que eu estou escrevendo, minha mão dói, literalmente. Tenho certeza de que é psicossomático. 


Me explico: ainda muito nova, comecei a namorar um cara bem mais velho que eu. Ele me escrevia cartas de amor, que para mim eram muito bem escritas. Eu tentava imitá-lo. Nessa época, meu censor ainda não morava dentro de mim. Tinha nome, sobrenome e uma casa para onde eu queria ir todos os dias. Uma prima, anos mais velha também, pegava as minhas cartas e as reescrevia. Desconfio que foi aí que comecei a sentir que talvez escrever fosse muito mais difícil do que eu imaginava, ou pelo menos escrever bem como eles. E suspeito mesmo que foi aí que escrever começou a ser antes um desafio, quando deveria ser um prazer.   


Meus cadernos de poesia e meus diários deixaram de existir quando entrei na faculdade. Eu já escrevia muito pouco, mas foi realmente com a quantidade de trabalhos escritos que eu tinha que entregar que o desejo por escrever algo autoral foi sendo soterrado. Logo no primeiro semestre, no curso de Introdução à Antropologia, tive que fazer uma prova, em sala de aula, descrevendo minuciosamente uma monografia clássica. Nunca esquecerei o que é a bruxaria para os Azande.      


Brincadeiras à parte, a verdade é que o curso de Ciências Sociais passou a moldar como eu escrevia, e a cada semestre, eu sentia a pressão de colocar referências e só formular argumentos a partir de textos lidos ou experiências de campo. Não me levem a mal, eu amo o ofício de antropóloga, e fazer etnografia já foi algo muito prazeroso para mim. Mas até minhas próprias experiências e minha argumentação sobre um determinado ponto da pesquisa tinham que vir acompanhadas da citação de autores importantes para a disciplina. De novo, eu não estou questionando o método antropológico, ou científico, de forma geral. Falo antes de como a rigidez, sobretudo de alguns professores, me fez mergulhar na necessidade constante de validar o que eu escrevo. 


É que essa rigidez ainda existe, mesmo quando eu escrevo textos totalmente autorais. Sempre me pego questionando se o que estou dizendo faz sentido, se é coerente, se será aceito. Uma autora argentina que eu gosto muito, Liliana Bodoc, afirma que: “a la literatura no hay que ponerle cáscaras ni cerrojos. La ficción debe ser pura libertad”. 


Dar vazão à criatividade, não preocupar se o que escrevemos já foi dito (afinal, estamos sempre partindo de referências, mesmo se não sabemos quais são, e nem as citamos), ter menos pudor, inclusive, em abordar certos temas, para mim, são pontos cruciais de uma boa literatura. E se ler e reler também, sem tantas amarras, com mais permissividade e mais indulgência. 


Taí, quem sabe eu incorporo o meu próprio conselho, e da próxima vez que eu for escrever à mão não doa tanto.   


Até breve, 


Lívia 

 
 
 

Comentários


Sarabatana Revista Independente de Literatura
  • Instagram

REVISTA INDEPENDENTE DE LITERATURA

bottom of page