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NO PRINCÍPIO ERA A CHIBATA, A PALAVRA ALADA
ricardo barros

No princípio era a chibata, a palavra alada
um último galho de oliveira
despontado fora de tempo
fina, esguia, à mão de semear
pronta para a educação
o pão da vida, o cálice da salvação
o princípio que empolava a pele
traçava a linha entre o bem e o mal
aqui não se toca, ali não se mexe
nos fazia cumprir a vontade do pai
os ditames da mãe
a ordem soberana para o diálogo
para a relação, para o afecto, para o carinho
silvada assim sobre o espírito das águas
porque quer acreditemos ou não
as boas palavras só produzem efeito
se impressas na pele, fibra a fibra
adentrando a epiderme, seduzindo a derme
beijando a hipoderme
dando ao músculo o sentido da obediência
e ao osso a postura para o amor patrício
sejam elas em forma de bofetada
coice, murro, soco, pancada, bracinho leve
ou vara esguia, coça de soga
ou vergastada eléctrica
as boas palavras só chegam ao coração
quando ao raspanete, ao berro e ao ódio
lhe damos um cheirinho da palma da mão
o sabor de uma lambada bem dada
porque assim se educa, se acadima
se dá o pão, nos tem afeito, se hão-de lembrar
de agradecer pelas bem dadas
de chorar pelas caídas no espaço sideral porque
pernas para te quero
de contar aos vindouros os tesouros sublimes da infância
a forma como nós e os animais partilhamos
um caminho comum, ancestral, divino
porque para se andar na linha
jungir a canga, é preciso que o medo ganhe corpo
esteja ali por detrás da porta
debaixo da mesa, vigie a noite, nos ponha de sentido
bico calado, andar ligeirinho
assim como assim, somos carne para canhão
mas também foice, arado, zagaia, forquilha, gadanha
enxada para cavar a terra prometida
dos nossos egrégios avós
canalha dada ao mundo por paridura
ninhada real que ao domingo reza o pai-nosso
e à semana o pão que o diabo amassou
veste bem os trapos da Feira de Barcelos
há-de ter nome quando sair destas portas a fora
aprender a ser gente
porque aqui mando eu e o teu pai e quando eu não estiver
mandas tu mulher
mesmo que na vossa cabeça uma vaca-boi
florido príncipe bordado de feno
primogénito nas artes marciais da porrada
porque o bater é coisa ligeira
servido em prato de sobremesa, no pires lascado
um bafinho breve do que é bom e barato
serve-se frio e fica-se quente
as orelhas ardem
a bochecha direita imita a esquerda
em queimadura vulcânica
as lágrimas vão-se convertendo em sangue
depois em amargura, em ódio
até ficarem em amor sinistro
que talvez se pudesse dizer doutro jeito
em bucólica canção, em cantar ao desafio
em modo de donzel, ai Deus, e u é
não aludir a Medeias nem a cadelas
do foi assim que se passou
cumprir os desígnios da deusa
a pantomina da «horda de símios cruéis»
em segredo, bico calado
se abres a boca, fodo-te, seu pulha
na noite erguem-se bichos florestais
com as suas mandíbulas pré-históricas
para cobiçar campas alheias
desenterrar demónios alados, mistérios profundos
cinco de litros creolina como quem rega a terra, os alfobres
para um novo nascimento
e assim se confunde o odor a podridão, os féretros espíritos
as malvadezas maternais
com o furar da sementeira, o trigo e o joio
o milho e a milhão, o mel e o fel
e mesmo que nos perguntem
nos interroguem, nos ameacem, nos desprezem
nos murmurem
melhor andar falados do que na esteva
o peito ergue-se para as coisas
com a sombra que elas merecem
um amor humano vindo do princípio do mundo
do primeiro verbo chibatado
mesmo que inábeis para habitar
o coração de outros humanos
cintila no meu peito a medalha das crias primitivas
uma camisa lavada, um beijo na testa
o jogo da bisca, às cegas conjugando a fortuna
que não aqui há batota, há acerto de contas
há os pontos nos ii, o terço que te rezo
porque o nosso amor não é para ti
é para as urtigas, para a lagartixa e para a cigarra
para a joaninha
voa, voa que o teu pai foi para Lisboa
e não somos teus filhos, nem teus enteados
nem estamos casados
a esta hora tão sepulcral, tão lamentosa
tão triste, tão fim de tarde
isto não é uma aldeia vinda
das auroras boreais, dos cânticos vikings
é um campo santo
e estamos todos reunidos em procissão
em descanse em paz, amém
porque alguém no murmúrio
do seu coração há-de rezar por nós
há-de lamentar os inocentes
chorar um pouco os desvalidos
sepultar, já apaziguadas
as crianças-adulto trazidas à corrente
por este mundo.


