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Silenciamento
Juliana Silva Gama

Dia O
Ao chegar no aeroporto sentiu a brusca mudança de ambiente. Fazia calor. Era verão e o ar-condicionado, assim como as luzes brancas eram insuficientes para o tamanho da sala de desembarque, o que deixavam mais evidentes as marcas de desgaste, má conservação e desconforto daquele lugar. Havia muitas pessoas aglomeradas em torno da esteira onde se entregavam as bagagens e elas pareciam estar bastante acostumadas a viver numa metrópole populosa. Se revezavam habilmente sem se incomodar em receber uma ou outra cotovelada, um empurrão ou uma pisada na disputa por um pequeno espaço bem junto à esteira. Essa seria uma constante na Cidade do México: disputar espaços e ainda assim aparentar algum respeito pela presença e convivência com outras tantas pessoas ao redor. Não sabia exatamente o que era mais autêntico ou o que era mais teatral. Se a disputa era verdadeira e a cordialidade, um teatro ou o contrário.
Logo, ela e seu marido pediram um taxi. Ele já estava acostumado à cidade porque já vivia lá havia 5 meses. Ele foi explicando um pouco sobre a cidade enquanto o taxi percorria as ruas que ainda tinham algum movimento às 04h da manhã. Contou sobre a cidade asteca, Tenochtitlán, cujas ruínas se encontram no centro da Cidade do México. Explicou-me sobre Tláloc, o deus da chuva e sobre La Llorona, um mito popular na América Latina hispânica sobre uma mulher que afogou seus filhos, se arrependeu e passou a chorar pelas ruas da cidade durante a noite, lamentando a perda dos filhos. Também comentou que a morte é um sacrifício honroso para os astecas, uma maneira de conseguir a proteção divina na vida após a morte. A vida boa não é sinônimo de felicidade. Para ter uma boa vida é necessário enraizar-se no corpo, na mente e nos sentimentos, na comunidade, na natureza.
Já nesse primeiro contato com o novo país se percebia desenraizada da comunidade. No caminho até a casa deles, ela se deu conta de que a cidade parecia pequena observando-a durante a madrugada: casas baixas, ruas e avenidas estreitas onde os carros circulavam muito próximos uns dos outros, mas provavelmente a cidade convulsionaria durante o dia, de tráfego, de contaminação, de multitude. Cheirava a milho. À medida que nos aproximávamos do alvorecer do dia, o cheiro se intensificava provavelmente porque nas casas, bares e restaurantes estavam sendo cozidas as tortilhas e massas à base de milho para os tacos, chilaquiles, flautas, sopes… e ao se aproximarem da famosa fábrica de cervejas mexicana o cheiro de milho se somava agora ao cheiro de cevada. Mal podia esperar para começar o dia e ver como seria aquela cidade de verdade, no cotidiano. Tinha boas expectativas. Mas não sabia ao certo quais.
Dia 2
Sentaram-se num café e pediram cada um uma concha, que era um pão doce com uma camada de açúcar por cima e um café. O café era bem suave, mas muito quente, seu marido comentou. Ela, que usualmente não bebe café pensou que talvez isso fosse bom e pediu para provar, mas era só um café aguado, sem nada novo.
– Bom dia! Vocês são do Brasil? Perguntou um homem que lhes observava desde a mesa ao lado.
– Sou sim, mas ele é da Espanha, comentou Juliana apontando para seu esposo.
– Vi que vocês estavam falando em português. Minha esposa é brasileira. Eu sou mexicano. Disse o homem.
– Vocês moram aqui faz muitos anos, perguntou ao homem?
– Moramos faz 6 meses, antes morávamos no Brasil. Você conhece algum grupo de brasileiros aqui no México? Acho que minha esposa vai gostar de participar de outros grupos.
– Sim, posso passar o contato para ela depois…
– O que vocês estão achando do México, perguntou ele querendo dar seguimento à conversa?
– Me parece interessante, ainda que um pouco caótico, pelo menos a Cidade do México, respondeu Juliana.
– Talvez haja uma nova perspectiva com esse novo presidente, comentou seu esposo.
– Talvez, mas duvido. O homem respondeu olhando diretamente para seu esposo.
– Me parece que ele tem propostas novas e diferentes do que estão acostumados os mexicanos, respondeu seu marido
– Algumas parecem novas e pode ser que sejam boas, outras me parecem um pouco fantasiosas para a realidade mexicana, respondeu o homem olhando somente para o seu marido.
A partir daí a conversa seguiu somente entre os dois homens e ela se sentiu invisível aos olhos dos dois ainda que também pudesse conversar sobre política. Tinha sido posta de lado de maneira forçada por aquele homem que se fez de simpático. Tentar um espaço de fala ali seria expor-se a uma humilhação sobre a qual já tinha lido, já tinha vivido, mas nunca com tanta força e impotência como a de ser mulher… Nunca havia sentido um machismo tão forte, tão explícito em uma conversa tão banal. Se só essa conversa foi motivo para tanto machismo, como seria o dia a dia naquele lugar? Sentiu o corpo quente de perplexidade, a face vermelha de ódio e, por fim, se sentiu pequena, como se estivesse afundando no buraco da poltrona e desaparecendo.
Dia 15
Nesse dia acordou de sobressalto com o ruído alto de uma sirene de polícia e de ambulâncias. Correu à varanda e viu uma multidão na calçada observando o que sucedia. Não conseguiu identificar o problema, mas se certificou de que não havia sido um terremoto. Um atropelamento talvez… Pensou em descer, mas decidiu não ir porque seria só mais uma curiosa na multidão, o que provavelmente não ajudaria em nada. Não há nada pior que curiosos e palpiteiros sobre sua vida no exato momento em que ela vira de cabeça para baixo ou acaba. Mas alguma vida teria acabado? Se fosse esse o caso, como saber como se sente no final, nessa hora de indiferença máxima frente ao deboche, à curiosidade, à intromissão alheios e a qualquer afeto?…
Olhou o celular e com algumas poucas buscas viu a notícia de um assassinato que havia ocorrido naquela madrugada, no segundo andar do edifício onde vivia, considerado um dos mais seguros da cidade. Ficou preocupada por sua segurança, mas mais perplexa ainda com as notícias que lia enquanto a multidão tentava espiar e imaginar o que acontecia. Diziam os jornais, em notícias breves de no máximo três parágrafos que aquela mulher era colombiana e trabalhava como prostituta de luxo. A chamavam de escort, uma acompanhante, não necessariamente prostituta. Teria vindo à Cidade do México para ganhar a vida dessa forma e enviava dinheiro à família e ao seu filho que havia ficado na Colômbia.
Não mencionavam nada sobre quem a havia matado em nenhuma das reportagens que lera. No final de uma delas, o mais chocante da morbidez e da indiferença viva: mostravam inúmeras fotos dela seminua. Então tanto fazia se ela estava morta, quem a houvesse matado, o motivo… A informação mais importante era o fato de ser prostituta e já que estava morta mesmo, porque não revelar a todos sua nudez? Assim os jornais poderiam lucrar um pouco mais com uma notícia tão sem graça de três parágrafos. Inacreditável essa lógica que lucra com a nudez mesmo estando morta.
Juliana lia os jornais mexicanos com uma certa tristeza. As notícias eram demasiadamente simplórias, informavam muito pouco e eram escritas com certa superficialidade. Se indignava ao lê-las até saber que os cartéis de tráfico e políticos corruptos simplesmente mandavam matar os jornalistas que lhes ameaçassem. Infelizmente o México é conhecido por muitos motivos, bons e ruins e dois deles são o desaparecimento ou assassinato de mulheres e o assassinato de jornalistas. Entendeu o motivo pelo qual lia nada nos jornais. Logo pensou que uma acompanhante de luxo provavelmente deveria saber de muitas coisas relacionadas ao narcotráfico e provavelmente por isso a assassinaram e talvez por isso as reportagens fossem tão ruins.
Lembrou-se de que havia visto essa moça no elevador, a poucos dias de haver chegado no México. Era de estatura baixa. Tinha silicone no bumbum e nos seios, unhas aumentadas, cabelo liso, loiro e uma roupa formal que tentava disfarçar seu corpo. Como ninguém sabia quem a havia matado se o prédio é cheio de câmeras de segurança e para subir era necessário identificar-se na portaria? Logo uma nova informação passou a ser compartilhada no grupo de whatsapp do prédio. Ela havia autorizado o seu assassino a subir. Eles se conheciam. Nada novo no feminicídio de sempre. Todos viram. Todos sabiam. As câmeras, os porteiros, mas ninguém se atrevia a saber, a denunciar quem quer que fosse. Entrou no apartamento porque ela abriu a porta. Ele lhe deu 3 tiros de pistola com silenciador. Um na cabeça, um no peito e um na coxa e saiu. Havia pegadas de sangue no piso do corredor do segundo andar, mas ninguém nunca o descobriu.
Sabia que aquilo tinha sido um feminicídio explícito e que era muito fácil identificar o criminoso. Sentiu-se com a cabeça quente. Estava vermelha de fúria. Sentiu-se enganada, asfixiada. Tentou informar-se na portaria. Desconversaram. Percebeu que era obrigada a ignorar porque poderia ser perigoso demais manifestar qualquer indignação. Poderia ser um vizinho, poderia ser um visitante frequente no prédio. Era. Provavelmente teria amigos lá. Melhor seria não perguntar, não saber e deixar de indignar-se com a superficialidade jornalística, pelo menos em partes. O silencio era gritante demais. Se já havia sofrido o machismo de uma conversa banal, quem diria de um feminicídio ao seu lado. Como enraizar-se naquele lugar?
Dia 43
Haviam tido dias lindos de cumplicidade por uma vida no estrangeiro e desejo de estar juntos e terem filhos, quando descobriu que estava grávida. Mas naquele dia, duas semanas depois do teste de gravidez, seu ânimo não era o mesmo. Acordou indisposta e com algo de dor. Ao longo do dia foi difícil caminhar mesmo dentro de casa, do quarto para a cozinha. Sentiu uma dor escondida no baixo ventre do lado direito. Ficou quase imobilizada na cama sem entender se aquilo poderia estar relacionado à gravidez. Resistiu, tomou um analgésico. Pensou que fosse apendicite ou algum mal jeito muscular. Escreveu a seu médico. Sentiu vergonha, medo e temeu algo ruim.
Decidiu ir ao hospital já que a medicação lhe deu um alívio passageiro que lhe permitiu chamar um taxi, mas caminhava mal, quase sem conseguir mover a perna direita. Pensou que pudesse ter sido o problema de circulação que lhe atormentava vez ou outra desde quando tinha 20 anos. Mas a dor atual era na outra perna. Então seria algo novo, pensou. Descartou ser um problema com a gravidez, afinal não era uma dor no centro do ventre, era lateral.
Depois de horas de burocracia e espera em ser atendida em um hospital caro, finalmente pôde deitar-se em um leito de observação. Não havia ninguém na sala, só as luzes brancas e o ruído dos equipamentos hospitalares, até que entrou uma jovem que lhe sorriu. Era uma estudante ou residente, porque em seu jaleco dizia turma 2019. Parecia confiante de que havia aprendido todo o necessário para seguir exercendo poder sobre os corpos alheios, o que melhor ensina a medicina de toda la vida, pensou Juliana. A jovem disse uma frase em um espanhol tão rápido e protocolar que mal pôde entender que a médica estava se apresentando e passou em seguida para um questionário sem fim.
– Nome
– Juliana
– Idade
– 36
– Febre?
– Não
– Alguma alergia?
– Não, bom, rinite.
– Dor?
– Sim
– de 0 a 10?
Juliana revirou os olhos sem saber como responder, sem entender porque um exame não seria mais eficiente que uma série de perguntas protocolares, e disse 7, meio sem saber o que isso significava diante de uma dor remediada por analgésicos.
A médica continuou fazendo perguntas infinitas para tentar saber todas as informações possíveis como se isso fosse suficiente para identificar imediatamente qual seria meu problema. E então teríamos a solução eficaz e tudo voltaria a ficar lindo como antes. Era o retrato fiel da propaganda enganosa da medicina, mas que poderia funcionar. A médica perguntou como era a dor. Ela explicou: uma dor forte no abdome, mas quase ao lado da perna. A médica começou a apalpar e apertou um lugar que provocou uma dor enorme. “São dores normais da maternidade. A maternidade dói. Se você quer ser mãe deve suportá-las. Pode ir pra casa. Tome o analgésico a cada 8h”. Essa era a solução miraculosa resultante de tantas perguntas inúteis. A médica estava confiante em seu questionário e em sua opinião, sem pedir qualquer ultrassom.
Seguiu sentindo uma dor que se incrementava pouco a pouco a cada dia. Até que duas noites depois, em casa, não sentiu só dor. Sentiu desilusão. Algo grave estava acontecendo. Sentiu vergonha, raiva e impaciência. Durante o jantar, a voz do marido parecia extremamente distante até desaparecer de sua audição. Não conseguia esquecer seu corpo que doía mais e mais. Queria salvar sua gravidez, seu sonho que desmoronava pouco a pouco, à medida que toda a tensão se voltava para aquele ponto de dor que irradiava. Nada importava mais. Saiu da sala, foi para a cama. Seu marido foi atrás e a olhou com estranhamento. Não a deixou deitar-se, insistiu para voltarem ao hospital. Ela concordou em lágrimas. Estava convencida de que algo ia mal, de que tinha perdido o jogo.
Ao chegar, rapidamente lhe ofereceram uma cadeira de rodas, diferente do que havia sido na primeira ida ao hospital. A atenderam de imediato e a levaram para a sala de ultrassom. Ainda tinham esperança de que tudo se resolveria bem, tal como prometia a propaganda enganosa da medicina. Na sala de ultrassom, os médicos comunicavam-se entre si por olhares, sem nunca compartilhar o que viam. Lembrou-se da conversa com o homem, do feminicídio, o silêncio era o mesmo. Juliana apenas acompanhava aquela comunicação silenciosa e arrogante em que faziam questão de deixar claro que havia um problema, mas sem dizer uma só palavra. Perguntou quase gritando se estava tudo bem, mas diziam que não poderiam dar informações. Nunca se sentiu tão agredida. Queria desaparecer. Na verdade, se sentiu desaparecendo junto com a gravidez, tudo sendo jogado no lixo em meio a lágrimas, a paciência, as palavras, a sanidade, a decência, a ética, a esperança, o sonho, ela mesma. Desenraizava-se do próprio corpo. Não havia bem viver. Lembrou-se do provérbio asteca: “escorregadia, a terra é indescritível”.


