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Em Singapura, dentro do cubo mágico

Dora Nunes Gago

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Olho as quatro paredes que me cercam. São brancas, simétricas. Claro, como poderiam
não ser simétricas, isso faz parte das leis da arquitectura, da construção, não?
Na verdade, não. Depois de dez anos a viver em Macau, sabe-se que a própria simetria
também pode ser uma ilusão óptica, tal como tantos outros princípios que tínhamos como
certos e garantidos. A cada momento, tudo em nós se desintegra e transforma ou
readapta, roçando fronteiras que julgávamos seguras e bem guardadas.
Mas o que sinto eu dentro deste cubo e o que significa para mim? Estranhamente, ele
conduz-me, antes de mais, a um território nítido do fim da infância e do início da
adolescência, a “febre” do cubo mágico dos anos oitenta, o desafio à lógica e à reflexão
escamoteadas em cores atraentes e vivas. Um cubo concebido em 1974, na Hungria, pelo
professor de arquitectura Erno Rubik, onde cada umas das seis faces tem uma cor
diferente, sendo cada uma delas dividida em três fileiras de cubinhos menores. Cada uma
pode girar 360 graus, na horizontal ou na vertical.
Não me recordo se terei ou não conseguido ultrapassar o desafio do cubo, lembro-me de o
associar a uma certa frustração, mas também à persistência. Havia os que, com a prática
e talvez a descoberta de uma qualquer fórmula mágica, resolviam o quebra-cabeças em
poucos minutos.
A verdade é que ali estão representadas, naquela panóplia de quadrados, os contrastes
da condição humana, os problemas desconcertantes que nos invadem, bordados de
simplicidade e complexidade, entre o estável e o dinâmico, a ordem e o caos.
E, de repente, ao branco das paredes deste quarto de um dos hotéis do aeroporto de
Singapura, somam-se quadrados amarelos, vermelhos verdes, azuis, laranja. E agora?
Ainda procuro entre cada um dos quadrados uma abertura, uma fissura, uma janela. Não
existe. As únicas janelas que me ligam ao exterior são os ecrãs do computador portátil e
do telemóvel. Não preciso reflectir sequer para chegar à conclusão que foi através dessas
janelas que mantive os meus alicerces, as traves-mestras dos afectos durante a última
década.
Mas ainda havia o contacto em carne e osso, os abraços, os beijos e as gargalhadas ao
vivo, pelo menos, renovadas na época do Natal e das férias de Verão. Há dois anos isso
acabou. Ficaram apenas os ecrãs com o seu brilho ilusório, a alimentar presenças
fantasma na outra ponta do mundo.
Neste momento, Singapura rima com liberdade. Significa que após a louca burocracia, o
stress impróprio para cardíacos: teste de covid cujo resultado negativo é obrigatório para
poder embarcar, mas se for feito com demasiada antecedência perderá a validade na
chegada ao destino, uma viagem preparada ao minuto, passos cronometrados ao
segundo, a incerteza do voo após tantos cancelamentos, marcações e remarcações.
Passado esse rosário de peripécias, consegui sair da hermética gaiola fortificada em que
se converteu Macau, onde a solidão pode ser um punhal de aço, cortando a alma fatia a
fatia.
Aceno à família e aos amigos, através das janelas luminosas do computador e do
telemóvel com o lenço branco da libertação. Paradoxalmente, este estranho cubo de
clausura significa espaço de liberdade.
Não sei de que cores será bordado o futuro, muito menos se desta vez terei a capacidade
de reagrupar cada uma delas de acordo com a harmonia necessária.
Mas haverá tantas cores quantos caminhos a trilhar, se tivermos aquela dose de coragem
ou de loucura essencial para inaugurar novas vidas, como nos diz Torga no poema Sísifo:
Recomeça / Se puderes / Sem angústia/ E sem pressa./E os passos que deres,/Nesse
caminho duro/ Do futuro/ Dá-os em liberdade./ Enquanto não alcances/ Não descanses./
De nenhum fruto queiras só metade. (…).

Edição 2

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