
Jabuti
Paulo Pacheco

Em frente ao Condomínio Villa Toscana, Edmilson fuma um cigarro com os olhos na escuridão do terreno descampado bem à frente. Beto, dentro da guarita, sintoniza o rádio no jogo e mexe no celular.
Preguinho, ao ver o vigilante, pula de calçada e adentra o descampado. O barulho da sacola de mercado chama atenção do vigilante, que o segue com o olhar. Ele inclina a cabeça para fazer a voz chegar dentro da guarita.
– Olha lá, Beto, lá vai aquele moleque de novo.
Beto trocava mensagens animadas com uma moradora. Não entendeu o que Edmilson falou, mas levantou as vistas. Edmilson continuou falando, olhando Preguinho que já quase sumia na escuridão.
– Bem roubou algo naquela sacola. Essas desgraças é só matando, não tem jeito.
– Parece que vai ser condomínio aí também. O governo vendeu o terreno, parece. Mas esse diabo aí é só cachaça mesmo, Edmilson. Não mexe com pedra não. Pede dinheiro ou vigia carro lá pelas bandas do centro, o coitado…
– Que nada! Com certeza mexe com coisa errada. É ele e um outro que as vezes desce por aqui. Esse outro parece que ainda é saliente, passa encarando e tudo.
Beto ignorou Edimilson porque alguma coisa na tela do celular acabara de dar muito certo, que o fez passar a língua de uma ponta à outra do bigode sorridente.
Preguinho atravessou animado o descampado e começou a descer a ribanceira de mato alto que vinha depois. De lá de cima, olhou para a escuridão e viu que Xuxo já tinha acendido o fogo lá embaixo.
Xuxo ouviu o barulho que se aproximava e levantou rápido. Nem era um casebre. Era sem telha, quase todo no chão, não fosse por uma ou outra parede pela metade. Era um antigo depósito da secretaria municipal de educação, abandonado. Num dos cantos mais protegidos do resto das ruínas, um colchão, garrafas de plástico, uma toalha aberta no chão, algumas vasilhas de plástico, latinhas cortadas para fazer de copo…
– Cadê? Arrumou?
– Arrumei.
Xuxo, de cócoras, pegou a sacola. Tirou dois limões, tirou outro saquinho com sal, duas garrafas de pinga e uma chave de fenda que empunhou em direção a Preguinho.
– Porra, chave de fenda?
– Foi o que deu pra achar.
Xuxo puxou um balde com pouca água que estava ao lado, pegou o bicho e foi lavando as patas sujas de barro. Colocou ele emborcado no chão.
Cada um abriu sua pequena garrafa de cachaça e ficaram ali, sob a luz da fogueira, olhando-o debater-se lentamente, mexendo as patas desordenadamente, e esticando o pescoço, a fim de desemborcar-se.
– Tu já comeu isso?
– Comi demais… Vi vovó fazer muito.
– Como que a gente vai fazer isso?
– Tem que sangrar, depois tem que abrir o casco, limpar…
Xuxo se levantou pegou uma faca dentro do copo. Preguinho andou mais ao longe pegou um pedaço de madeira velha de carteira escolar e jogou na fogueira. A luz melhorou.
Xuxo prendeu o bicho entre seus pés. Com um golpe firme enfiou a faca no pescoço do bicho em direção ao interior do casco. O bicho encolheu a cabeça ao máximo. Começou a sangrar mas, ao que parecia, não ia ser fácil. Tinha uma força estranha que Xuxo não conseguia entender. Resolveu dar outra facada, dessa vez na parte debaixo da cabeça, abaixo da mandíbula. Retirou a faca e o bicho permanecia com a cabeça retraída.
– Caralho… que filha da puta.
Preguinho olhava para Xuxo. Pensou que aquele esforço deveria ter cortado até a cachaça. Ofereceu um gole que Xuxo tomou. De repente, a cabeça do bicho começou a ceder. Foi então que Xuxo foi passando a faca com força, ao entorno dela, como quem corta o miolo do bolo de aniversário. Agora começara a sair mais sangue. Com muito custo, puxou a cabeça do bicho e o degolou por completo.
Sentado num tijolo, Xuxo ficou segurando o bicho degolado e olhando aquele gotejar lento de sangue no chão. Preguinho em pé ao lado bebendo a cachaça e olhando Xuxo. A morte, por um instante, impôs um silêncio constrangedor que acusava os assassinos. Mas não mais constrangedor que a persistência do bicho sem cabeça permanecer movendo as patas depois de bons minutos sem a cabeça.
– É assim mesmo? Fica se mexendo assim?
– Vovó dizia que esse bicho não sabe morrer. Tá tentando fugir, eu acho. Se pudesse, né, tudo bem… Mas anda devagar demais. E agora sem a cabeça, não sabe nem pra onde fugir.
Xuxo riu da besteira que disse. Limpou o suor da testa com o punho, pois a mão era toda em sangue. Enfiou as mãos no balde e as esfregou para tirar um pouco do sangue e pegar o copo de pinga. Deu uma golada, fez cara feia e voltou a reclamar com Preguinho.
– Agora, como que vamos abrir ele com uma chave de fenda, eu não sei. Acho que precisamos de uma pedra grande. Ali perto daqueles entulhos deve ter.
Com muito custo, usando a pedra encontrada e a chave de fenda, eles conseguiram quebrar o casco do bicho. Xuxo então separou aquilo que ele achava que seriam as entranhas do bicho, jogou fora. Tirou os pedaços aos poucos, as patas o pescoço, colocou em uma garrafa de refrigerante, com o caldo do limão e o sal.
Preguinho pegou uns ferros pra apoiar a carne em cima, colocou mais restos de cadeiras e mesas na fogueira.
Depois de comerem, contemplaram, bêbados, a fogueira. De resto, os rostos iluminados, pela cachaça e pelo fogo, e a vontade de morar naquele canto arruinado, que eles haviam transformado em castelo.
E o som que se ouvia longe, do estalar hipnótico do trem no trilho, os adormeceu… E acordou Beto, de súbito.
Se arrastou até o canto da cama, pegou o celular dentro da calça e viu que cochilou dez minutos, apenas. – Graças a Deus. Levantou-se, nu.
– Vai aonde?
– Pegar uma água. Você quer?
– Não, meu bem.
Na volta, com o copo na mão, Beto passeou com os olhos em uma grande estante cheia de livros. Andou mais um pouco, tomou outro gole e parou nos retratos pendurados em uma parede. A quantidade de paisagens do mundo em cada foto o fez concluir baixinho: “A coroa é abonada mesmo”. Em um dos retratos, viu Carmen abraçada com uma garotinha e voltou rápido para o quarto.
– Tô andando pelado e nem perguntei se sua neta está na sua casa!
– Não, seu bobo, ela voltou pra casa da minha filha ontem. Você acha que eu ia te chamar com ela aqui? Eu hein!?
– Ah, tá.
O rádio então emite um sinal seguido da voz de Edimilson.
– Alfa, na escuta?
– QAP. Prossiga.
– Em vinte minutos, vou religar a câmera.
-QSL.
Beto tentou mais uma graça com Carmen naquele tempo, mas há algum tempo já não era mais aquele garoto sempre pronto. Quando se vestia para voltar à guarita, já amanhecendo, olhou para Carmen nua na cama.
– Hoje foi tão bom… Queria mais… Amanhã?
– Amanhã não dá. Minha neta volta aqui amanhã. Tá cismada que a tartaruga dela sumiu. Meu genro mandou mensagem dizendo que hoje ela vem aqui pra procurar.
– Tartaruga mesmo?
– É. É um jabuti, menino, que eu ganhei e dei pra ela cuidar. Como eles moram em apartamento, melhor ele ficar aqui.
– Ah, esses bichos são tinhosos. Gostam de ficar entocados. Deve estar em algum canto lá na sua piscina, no jardim. Quando sentir fome ele aparece.
– Que nem a gente, então, né? Melhor você ir, pra não se atrasar.
Sorriram como cúmplices.