
Nero
Daniela Bonafé

I
Não é possível que a vida tenha saído de seu controle. Há anos tudo estava como
deveria estar, na palma de sua mão. Três minúsculas pessoas bem amassadas entre seus
dedos, diariamente, a serviço de suas vontades e de repente, ao chegar em casa, a rotina
perfeita não existe mais.
Um pavor sobe pela sua coluna e lhe esbugalha os olhos.
Como é que vai continuar sem eles e sem suas brincadeiras perversas de mandar e
desmandar?
O portão está aberto e nenhum olho espreita pela janela como de costume. Nenhuma
voz grita lá de dentro, esganiçada:
— Quietos, ele chegou!
Será que algum vizinho decidiu se intrometer?
Ainda assim, prefere acreditar que se trata apenas de um dia estranho, mas não
fatídico. Quando destranca a porta da sala, não é recebido pelas duas meninas descalças
vestidas de camisolas brancas ou pelo garoto barbado com boias nos braços, nem pela mulher
servindo mariposas grelhadas, seu petisco favorito.
O silêncio reina absoluto e o som de suas atrocidades urram tão fundo em sua cabeça
que ela explode. Seu corpo moribundo vazando pelo pescoço e a cabeça despedaçada
salpicam os azulejos do banheiro.
Nasce um novo jeito de existir.
II
Chegava do trabalho pontualmente às 18h. Era o único a entrar e sair da casa e bem
por isso, tomava as precauções necessárias para que o cheiro dos cigarros não impregnasse
suas roupas. Sem vestígios de um mundo externo e profano, suas camisas continuavam
brancas e limpas, como todas as vestimentas que usavam diariamente. Também as paredes,
xícaras, pratos, móveis, tapetes, os azulejos e revestimentos de todos os cômodos, tudo
reluzia uma brancura intacta e pura, sem igual.
Quando trazia para casa as compras em sacolas leitosas, pelas quais não era possível
ver o conteúdo, sabia que teria uma longa noite pela frente. Depois que todos dormiam, encapava
todas as caixas de alimentos de papel branco, pintava as bisnagas com tinta branca,
tirava todos os alimentos dos saquinhos e os colocava em potes brancos hermeticamente
fechados. Os vestígios iam direto para o lixo, fora da propriedade. Era necessário que
acordassem com tudo já devidamente organizado. Mas, enfim, hoje não foi um dia de
compras e ele pode seguir a noite como sempre.
As meninas beijam-lhe a testa, o menino ajoelha-se em sua frente e toma um tapa bem
dado, desta vez no lado esquerdo do rosto e a mulher lambe sua mão. Sem novidades.
Comem os pássaros do jardim com molho de leite e bebem a urina do dia anterior. Ele
toma whisky com três pedras de gelo e diz, animado, que já jantou a caminho de casa.
Em seguida, seguem juntos para a sala. Ele senta-se na poltrona de couro e ordena que
os outros fiquem em pé, enfileirados. Calados, aguardam a vez de falar, que só se dá quando
ele aponta o rifle para a cabeça de cada um.
— Clara, como foi seu dia?
— Foi bom. Eu toquei banjo, fiquei quieta um tempo olhando para o teto, desenhei meus
pensamentos. Ah, também copiei mais um pedaço daquele livro que o senhor me deu.
— Muito bem, e você, Alva?
— Eu não me senti bem hoje. Ando com dores de barriga, mas comi o de sempre. Bianca me
disse que estou crescendo e que terei essas dores todos os meses.
— É isso mesmo, Bianca?
Ele olha para a mulher com olhos de reprimenda, enquanto passa o rifle no meio de
suas pernas.
— Sim, mas não se preocupe, já dei a ela um de meus comprimidos. Você precisa comprar
mais deles agora.
Chega a vez do garoto. Ele ajoelha-se outra vez em sua frente e toma outro tapa bem
dado, desta vez no lado direito do rosto.
— Fale, Nero, mas antes, retire essas boias ridículas. Eu já não te disse que elas não prestam
para nada?
O garoto faz exatamente o que ele manda.
— Não tenho nada para dizer.
— Que bom, assim que eu gosto. Agora chega. Subam para seus quartos. Vou apagar as luzes
em dez minutos.
Todos sobem e deitam. A mulher afunda sem roupas na cama de casal e aguarda. No
quarto ao lado, as meninas se acomodam dentro das conchas e o garoto estica o corpo sobre
sua cama de faquir. Tudo fica escuro e é preciso fechar os olhos rapidamente.
— Nero, feche os olhos!
— Não!
— Você está maluco? Feche logo ou o preto vai contaminar você!
— Não quero, quero ver o que há de noite!
— Você enlouqueceu! Bem que ele diz que você não atina bem da cabeça. Você sabe muito
bem que só podemos ver o branco! Feche os olhos!
As meninas, preocupadas, apertam as pálpebras e rezam pedindo que ele não fique
outra vez acordado, mas Nero sabe que há outra cor possível.
III
Naquela manhã, assim que o homem sai para o trabalho, Nero pega a chave do
armário debaixo da santa, abre a gaveta que está trancada e pega o rifle que está ali. Sem
fazer barulhos, vai até o quarto de Bianca. Ela está saindo do banho quando ele aponta a arma
para sua cabeça, dizendo que é para se vestir em silêncio.
Enquanto as meninas ainda dormem, com a arma em punho, Nero faz Bianca descer
as escadas e a leva até a velha caminhonete. Amordaça a sua boca com um lençol, amarra-lhe
as pernas e os braços com a corda que está na garagem e tranca a porta por fora.
Em seguida, vai até o outro quarto, acorda as meninas e com o rifle apontado para
suas cabeças, as obriga a descer e entrar na caminhonete com Bianca.
— Desculpe amordaçar vocês, mas não quero que falem, só quero que vejam.
Sem nunca terem saído daqueles altos muros, cercados no topo com arame farpado e
cacos de vidro, elas se debatem de medo.
Ele jamais dirigiu, mas está decidido. Liga o veículo, pisa em todos os pedais até
entender como faz a geringonça andar e acelera. Em disparada, arromba o portão de entrada e
segue com as três no banco de trás.