
As sílabas ou corpos ou ausências que transporto
Casé Lontra Marques

As sílabas ou corpos ou ausências que transporto (as sílabas e corpos e ausências em
que me transformo) tocam o chão sem muito tremor. E contaminam as raízes dos
traumas. E poluem as nascentes das ansiedades que engessariam os nervos, que
pavimentariam as artérias não fosse o medo — sempre tão movediço, moroso mas
movediço; não fosse o amor, sobretudo o amor que amanhece em meus dentes/em
nossas mucosas (menos insondáveis que incessantes). O amor que afoga as gengivas,
fecundando a mudez que nos impõe uma saúde apática. E fecundar a mudez é o que
esse amor faz de melhor porque o faz cotidianamente; falo — você sabe — da mudez
das línguas mas não só. Falo também da mudez dos lapsos. Mas não só. Falo de uma
mudez ainda mais vasta, ainda mais ampla porque áspera. A mudez dos gestos. Das
vontades. Dos descalabros. Sim, dos descalabros. E assombros (comboios de
assombros) que nos tornam animais tão inconsistentes. Ou estas ríspidas presenças
chamadas a desejar. Quando o receio
de desaparecer
é acuado pelo calor de encadear algumas palavras como feridas no caule. Como
formigas. Como fungos no tronco de uma pressa qualquer. Sem adiar nenhum distúrbio.
Injetamos nosso amor no tutano do tempo para abastecer os dias. Para abater aquilo que
impede os dias de se dedicarem aos dons emoldurados pelo desalento de cada dia.
Quando o medo
de morrer é precedido. Ou
imprensado
ou reprimido. Quando
o medo de morrer é perpassado pela
dor
de deixar as palavras. Quando.
Quando o medo de morrer
é revigorado
[1]
pela dor de deixar
as palavras.
A dança de onde viemos. A delicadeza a que nos voluntariamos mergulha algumas
agulhas na argamassa de decibéis dos berros mais imbecis. E assim
adulteramos
a atuação da atenção. Aprendendo, passo após passo. Aprendendo a não lavar o piso das
chacinas onde uma leve lucidez nos alarga isto é nos ilimita isto é nos alicia. Preparo a
garganta para o silêncio que virá. (Seus sinais são ácidos.) Preparo a garganta para o
silêncio que não poderá, não poderá nos soterrar. E o resto do fôlego recorre à fala que
enterrarei no fêmur. Para aguentar a jornada: preparo a garganta. E reconstruo o
diafragma. Para suportar, talvez em vão. Para suportar a caminhada: preparo — com
brusco prazer — a garganta. E descosturo
a asma. Sob o sol
p
erdão sob o som de
um novo
surto. (Sou até onde vai a minha dor.) (Repete.) (Sou até onde vai a minha dor.)
(Assiduamente.) (Sou até onde vai a minha dor.) (Sou o braço que se solta da atrofia.)
(O
barco que surpreende
o pânico.) (E não evita.) (E não abrevia a imersão no mar incerto.) (Com sua
musculatura arredia.) (Sua massa cáustica.) (Noite
na vala da
noite.) (Vorazmente
turva.)
Você acorda, fustigando a manhã com a testa estufada, por favor, mais traquejo na
traqueia. Isso. Sobra a hemorragia: mansa
solução?
Sobra a hemorragia; o fluxo infiltra/infesta a forma — ferindo qualquer fixidez (o fluxo
esboroa não estraçalha a borda o barro a bala que o abranda. E nos fissura):
enquanto
a coleta — da ira? — não começa, a chuva (com paciência) derruba
a boca
[2]
sobre os prédios como se houvesse cidade abaixo dos prédios ou como se a cidade se
ofertasse ou como se na cidade que se oferta fosse possível não
ceder
tanto a todo
momento. Encontros e choques, laços e dissoluções
compõem, diariamente,
o que nos acostumamos a chamar
ainda
de idade, espaço
ou espanto que se propaga também
a partir
de implosões, espessando
nossos espasmos.