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Newsletter - 21/11/24

Assim como não se entra no mesmo rio duas vezes, não se volta à mesma casa.


Trilha sonora para essa edição: Book of sound, Hypnotic Brass Ensemble


I


Cheguei ontem à casa dos meus pais. A casa onde morei desde que viemos para Brasília, quando eu tinha um ano, até sair de casa, aos 25. A casa onde eles moram há mais de quatro décadas.


Estou sozinha, meus pais estão viajando e meu companheiro também. Andei por cada cômodo, reparando na passagem do tempo sobre as coisas. Tudo como um espelho do que vivi até esse momento da minha vida. Muitas coisas já não existem, ou estão se desfazendo. Metáforas perfeitas do que sinto.


Agora, ouço entrar pela janela um parabéns pra você. Na pracinha dos cogumelos, da 308 sul, uma criança comemora seus anos. Ao meu lado, um álbum de fotos de quando eu ainda era a única filha. 


Sozinha, nessa mesma casa, que já não é a mesma, entendo que a verdade é que, tal como num rio, nunca se entra duas vezes na mesma casa. 


É que tudo é fluxo. 



II


No avião de Singapura para Atenas, esqueci um rolo de pôsteres que tínhamos coletado em vários lugares do Japão. Em vão, tentei recuperar, liguei para a companhia aérea, visitei o setor de achados e perdidos do aeroporto, liguei para o mesmo setor na cidade para onde o avião seguiu depois de nos deixar. Nada. Foi como se aqueles papeis tivessem evaporado. 


Durante esse mesmo voo, descobri que meu companheiro tinha inadvertidamente jogado fora uma cópia do meu livro com anotações importantes para a finalização da diagramação. Meu livro, numa lata de lixo de Kuala Lumpur. Senti uma dor real no peito.



Nos dois momentos, sofri, mas aprendi também (depois de chorar, pensar em me separar e desistir de ser escritora) que é preciso deixar que as coisas passem. Quem sabe a nova leitura do livro não me trará a oportunidade de atentar para coisas que não estavam naquelas anotações? Ou talvez a memória dos lugares por onde passamos e pegamos aqueles pôsteres seja mais importante que tê-los eternizados na parede? 


III


Ando cada vez mais interessada nessa tal memória. Na possibilidade, como disse Sylvia Molloy, de ser dona da minha memória. Me pergunto se é possível saber o que realmente aconteceu, em qualquer situação. E me espanto com a maravilha que é ser capaz de recontar minha história como eu quiser, afinal, só eu sou capaz de alinhavar os tantos acontecimentos que vivi em uma linha que faça sentido. Ao menos para mim.


Então, escolho que os pôsteres perdidos carreguem com eles uma prova material que talvez não seja bem vinda para a história que quero contar dos últimos meses da minha vida. Nas minhas lembranças, a luz alaranjada do fim do dia deixava aquela gueixa sorridente com um copo de cerveja na mão ainda mais irresistível. Mas o mais bonito desse pôster, é que meu companheiro saiu numa madrugada de chuva para roubar ele pra mim. 


IV


No dia seguinte, ele ficou se sentindo meio mal, pensando que o pôster estava naquela parede há tanto tempo, que o dono do bar ficaria tão triste quando chegasse e visse que aquela peça que ele mesmo tinha colado na parede externa de seu estabelecimento há mais de 20 anos não estava mais lá. 


Duas semanas depois, passei na frente do bar e o pôster estava lá, colado no mesmo lugar. Chegando em casa, vi que ele também estava no rolo que carregamos pelas próximas 5 semanas e que eu perderia poucos dias antes do fim dessa viagem pela Ásia. Castigo pelo roubo? Prefiro achar que foi cansaço e tristeza por perceber que aquela viagem estava chegando ao fim.


Ainda espero ter aquela gueixa na parede.


Até breve,

Anna


📚Li 108 da Surina Mariana. Me reconheci em muitas das situações ali contadas e, talvez por isso mesmo, alguma coisa que ainda não sei precisar me incomodou. Um espelho nítido demais? 


📚Estou lendo Nomadismo por mi país, da Cecília Pavón. Estou amando!

 
 
 

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