Newsletter - 18/07/25
- Anna Davison

- 18 de jul.
- 4 min de leitura
Delírio cor de rosa.
Trilha sonora para essa edição: Radio Yugawara, Passepartout Duo e INOYAMALAND
I
Abro o Instagram e me deparo com um senhor mostrando uma mesa de centro de madeira entalhada. Ele sorri e diz que a mesa é portuguesa. O tampo traz pétalas que formam uma rosa no centro da madeira escura. Se olharmos só os detalhes, parece um mar de ondas simétricas, como um cenário de teatro de fantoches feito de papel azul e branco onde deslizaria um barquinho até cair no redemoinho que é a rosa.
II
Na janela do oitavo andar, o reflexo do pôr do sol tinge de rosa os prédios brancos. O vidro sujo transforma a paisagem em aquarela. Um gato se espreguiça no parapeito vizinho. Um saco plástico se solta da sacada do outro lado da rua e desce numa dança lenta até a calçada.
III
Ando pelas ruas de Buenos Aires e me deparo com muitos detalhes cor de rosa. O dia está cinza e a cor do balão cortado e murcho em forma de coração jogado na faixa de pedestre parece não pertencer ali. Viro a esquina e vejo uma casa da exata mesma cor do balão e, depois, um portão e muitas sacadas no mesmo tom. Olhando para cima, o céu é de um azul chiclete, como também é o tom de rosa que vejo em tudo, cheio de nuvens brancas de algodão-doce.

IV
Comprei uma camiseta rosa em que se lê em letras vermelhas: “esta é minha camiseta de leitura”. Me visto com ela na esperança de que assim eu consiga voltar a ler no ritmo que mantive nos últimos anos. Ler há de ser a coisa que mais gosto de fazer, mas ando dispersa demais. Leio e penso em qualquer outra coisa. Quero resolver alguma angústia que ainda não sei nomear.
V
Subi uma escada que terminava num terraço deserto. O chão era de lajotas rosa-claro desbotadas. No meio delas, crescia uma flor solitária entre as frestas.
VI
Na feira, chovia. As pessoas se escondiam sob guarda-chuvas transparentes. De longe, parecia um campo de cogumelos. Um vendedor embalava tomates enquanto cantava baixo uma canção antiga. Os morangos na banca ao lado pareciam derreter sob a lona cor-de-rosa translúcida.

VII
Na praça tem um carrossel antigo e sempre vazio. De noite, as luzes deixam a praça rosada como o vinho que tomo no restaurante da esquina. A música infantil que acompanha o sobe e desce dos cavalinhos não me diz absolutamente nada, não é capaz de me lembrar de quando eu era menina e não gostava de rosa.
Nunca gostei de rosa, mas agora gosto.
VIII
Um dos principais ensinamentos do Buda fala da importância de reconhecer a impermanência (anityatā) de tudo. É pelo entendimento dessa verdade da vida que se chega à entrada para o caminho da libertação. O tal fim da angústia.
Ou, tudo muda o tempo todo no mundo, como já cantava Lulu Santos.
O problema é que não sei como assumir para mim mesma que hoje gosto de rosa, que posso ser criança e, mesmo assim, tomar um vinho no bar enquanto reparo no carrossel. Como é que faço para me reconhecer no espelho quando minhas bochechas estão rosas?
IX
O livro que estou escrevendo não era para ser sobre o que se tornou. Não era para ser sobre o luto pela perda do meu irmão Pedro. Quando comecei, eu tinha uma ideia que segue me obcecando, mas que acabou virando outra coisa, por vários motivos que não cabem aqui hoje. Nem todos controláveis por mim, diga-se de passagem. Ainda assim, enfrento uma dificuldade imensa de lidar com o material que já produzi. Tiro e boto o texto na gaveta. Tento pensar em outras coisas, mas não consigo fazer nada por mais de um minuto e trinta segundos sem me dar conta de que ando com uma bola de golfe instalada na traqueia. Esses dias, fiquei até afônica.
Bolas de golfe não são cor de rosa e nem mastigáveis.
X
Tentando lidar com a bola como se ela fosse uma balinha de morango e não a coisa amarga e áspera de que ela é feita, caminho como quem busca conhecer o que me agrada. Fotografo cada coisa rosa, as muitas sombras azuladas. Busco o sorriso do senhor que mostra a mesa. A cada passo, pergunto: o que é que eu gosto nesse texto? O que me causa tanta repulsa nele? Quando foi que entrei nesse barquinho de papel e perdi a noção de que ele está em um cenário que eu mesma construí e que vai seguir mudando, quer eu queira, quer não?

Não há possibilidade de controle, os textos se transformam, eu mudo, os desejos e gostos se impõem irreconhecíveis. A escrita, como o garimpo de objetos antigos, pode levar a absolutamente nada, ou a uma mesa que é linda, mesmo que não possa pertencer à casa de ninguém (será que a xícara ficaria em pé sobre aquelas pétalas ondulantes?).
XI
Imagina o que é gostar de rosa e ter nas mãos uma mesa que carrega as marés?
Talvez seja isso, no fim: continuar olhando. Continuar escrevendo mesmo sem saber o que o texto virou. Continuar me espantando com o rosa que insiste em aparecer nas coisas — no céu, no copo de plástico, no vinco do lençol.
O luto não termina, só muda de roupa. O texto também.
A menina que eu fui teria odiado essa camiseta de leitura, mas hoje eu a visto como quem veste uma pele impermanente. Como quem sabe que não há volta — mas há caminho.
Até breve!
Anna
📚Li A Boba da Corte, da Tati Bernardi e confesso que não gostei. Leio as colunas dela na folha há anos e acho que esperava mais do livro.
📚Li Una Idea Genial, da Inés Acevedo e achei bom. É um livro leve, mas com muitas camadas.
📚Comecei outros três livros, mas ando tendo dificuldade de engatar. Alguma sugestão?
🎥Assisti um filme argentino que adorei. Silvia Prieto é do Martín Rejtman e a atriz principal é a Rosario Bléfari, de quem li um livro que recomendei em uma newsletter recente.




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