newsletter- 16/05/25
- Lívia Vitenti

- 16 de mai
- 3 min de leitura

Trilha sonora para essa edição: Todo Cambia, Julio Numhauser e Mercedes Sosa
Salve, salve,
Eu vivi uma outra vida por breves 3 meses, em Montevidéu. Cheguei lá no começo de outubro de 2004, e em alguns dias eu comemoraria, junto a muitos uruguaios, a vitória de Tabaré Vázquez. Era a primeira vez que um político de esquerda estava sendo eleito como presidente, desde o fim da ditadura militar. No palanque, ele dizia que as pessoas tinham que festejar. Ao lado dele, um tupamaro, Pepe Mujica.
A casa onde eu morava pertencia a um casal de antigos guerrilheiros tupamaros, e nessa noite eles tinham convidado uma amiga para comemorar aquela vitória tão sonhada. Essa senhora tinha sido presa e torturada, tinha lutado ao lado de Mujica, e era uma pessoa profundamente triste. Não me lembro de mais nada sobre ela. Só de seu semblante melancólico e por vezes raivoso.
Essa semana Mujica morreu. Eu não sei o que aconteceu com essa senhora, e perdi contato com os donos daquela casa há muitos anos. Mas ver as pessoas recordando a vitória de Tabaré Vázquez, os vídeos mostrando como a alegria tinha tomado as ruas, tendo como trilha sonora Mercedes Sosa cantando Todo Cambia, despertou em mim uma memória que tinha ficado soterrada por outras que eu julgava mais importantes para mim.
Como se a alegria não fizesse parte daquela minha vida.
Como se o olhar daquela senhora me mostrasse algo que eu nunca seria capaz de entender.
Criei, a partir dessa experiência no Uruguai, uma mitologia muito própria. Como nos mitos fundadores, foi quando a brutalidade de um evento se abateu sobre mim que eu pude mudar minhas estruturas. Até então, eu via o amor da mesma forma como o via André Breton, em “O Amor Louco”, uma obra surrealista que mistura vivências, sonhos, fotografias e poemas e que explora dois tipos de amores, o carnal e o espiritual. Segundo Breton, uma paixão total, ou o amor louco, é o sentimento mais sublime que somos capazes de sentir. E pensando nisso, escreveu a seguinte poesia para sua filha:
“Afastar-me para longe de vós! Revestia-se para mim da maior importância ouvir-vos, por exemplo, responder, um dia, com toda a inocência, a essas perguntas insidiosas que as pessoas crescidas fazem às crianças: ‘Com que é que se pensa, com que é que se sofre? Como é que se soube o nome do sol? De onde é que a noite vem?’ Como se elas próprias soubessem! Já que, para mim, sois a criatura humana em toda a autenticidade, deveríeis, contra tudo o que é previsível, ser vós mesma a ensinar-mo…
Gostaria de saber-vos loucamente amada."
Era esse amor louco que eu procurava, e não a arte de amar de Manuel Bandeira, eu queria que os corpos e as almas se comunicassem.
Mas não aconteceu. As almas não foram capazes de se comunicar.
Mas hoje eu sei que essa festa ficou em mim. Hoje eu sei que nessa mitologia, não só a brutalidade foi transformadora. Há algo de muito bonito na forma como pessoas e povos são capazes de reescrever suas histórias. Mujica nos mostrou isso, o Uruguai me mostrou isso.
Hoje vivo com dois corações brancos e celestes dentro do peito, e vou seguindo os passos de Pepe que nos pede para que, se houver raiva, que a transformemos em esperança.
Eu espero que a senhora que eu vi tão angustiada, possa ter encontrado sua paz.
Deixo para vocês a poesia de Manuel Bandeira:
“Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.”
Até breve,
Lívia




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