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Newsletter - 12/09/25

Rezar um terço.


Trilha sonora para essa edição: Strange clouds, Passepartout duo e INOYAMALAND


I


Uma chuva fina e permanente 

molhava minha calça jeans

azul como o céu

do outro lado das nuvens

entramos na igreja e soltei

alguma interjeição de espanto


Na luz do confessionário o padre

lia o que interpretei ser

a bíblia mas podia

ser o último livro

da Laura Wittner ou da Mariana Henriquez

provavelmente da Mariana Henriquez


Tentei fotografar

o padre sentado

no confessionário sob a luz

amarela como deveriam sempre

ser as luzes mas uma mulher

me olhava insistente


Depois ela

me convidou para rezar

um terço em Córdoba

às vésperas do meu

aniversário recusei 

e agradeci


Nunca me fizeram

esse convite

antes


ree

II


Fiz 46 anos em Córdoba, na Argentina, há quase duas semanas. Estava gripada, o que parece vir se tornando a regra nos meus aniversários, como se o corpo resistisse à passagem dos anos. Mesmo que quem resista seja a cabeça. 


Durante a viagem, anotei pequenas cenas, como a da igreja, para, quem sabe, escrever poemas. Mas a verdade é que desaprendi a escrever poemas. 


Escrever poemas não é como andar de bicicleta. É preciso praticar todos os dias, muito e sempre, mas, sabe como é, eu resisto.


III


Abri o ChatGPT e perguntei como é que se faz para virar livreira (meu desejo desde que percebi que gosto mesmo é de ler). Ao que ele respondeu:


“Ser livreira(o) pode ter muitos caminhos, dependendo se você quer trabalhar numa livraria já existente ou abrir a sua própria. Vou te dar um panorama: [...]. O que esses exemplos mostram é que ser livreira é sempre um gesto político e poético: cada espaço tem uma identidade clara, que nasce do desejo de quem o cria.” (destaques do próprio ChatGPT).


Emudeço frente à palavra desejo.


IV


Desejo tem sido a palavra da vez aqui nessa newsletter e nas minhas sessões de psicanálise, mas a verdade é que não sei como lidar com ela. Mais cedo, por acaso, vi um vídeo da Marilena Chauí falando da etimologia da palavra, em que ela explica que o termo latino desiderium, de onde nasce a palavra desejo, está relacionado à astrologia, que nada mais é que a tentativa de decifrar pelos astros o destino de cada um.


Segundo ela, sidera, em latim, é o desenho das constelações. Desde a antiguidade, muitos acreditam ser possível olhar os astros e, num diálogo, pedir uma resposta sobre o destino. Nesse contexto, considerare é estar em diálogo com os astros e desiderare é estar sem essa conexão, sem a resposta dos astros sobre o destino, sozinhos na busca do sentido do nosso destino. Desejo então, de um ponto de vista do sentir, é uma falta daquilo que estamos buscando.


O que eu desejo é o que me falta.


ree

V


Para o Budismo, o que faz da vida sofrimento é exatamente o desejar: aquilo que nos falta a cada instante, das coisas mais banais, como o sono ou a fome, aos grandes intentos e paixões. 


Não é possível não desejar, logo, não é possível não sofrer.


VI


O ponto, para mim, nesse momento da minha vida, talvez seja mais a paralisia de ação para obter aquilo que me falta que a capacidade de nomear meus desejos. Até porque ele é sempre mutante, como também nos lembra o Budismo. 


Nessa paralisia, me falta, para além daquilo que desejo, o gesto


político

e

poético


que me leve ao que desejo


VII


Quanto à mulher que me convidou para rezar o terço, fiquei olhando de rabo de olho para ela, que fazia o mesmo convite a cada pessoa que entrava na igreja. Só relaxei quando outra mulher se sentou para rezar com ela.


O padre continuou lendo sob a luz amarela, como deveriam ser sempre as luzes, do confessionário.


Eu voltei para a chuva.


É isso!



Até breve,

Anna


📚Ler Mishima funcionou! Terminei La encomienda, da Margarita García Robayo, La insumisa, da Cristina Peri Rossi e Aliens & Anorexia, da Chris Kraus. Ótimos livros, embora o da Margarita seja meu favorito. O do Mishima é bem longo e ainda estou longe de acabar, mas estou gostando!

 
 
 

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