Newsletter - 04/04/25
- Lívia Vitenti
- 4 de abr.
- 3 min de leitura

Trilha sonora para essa edição: 900 Miles, de Terry Callier
Salve, salve,
Fiz 46 anos dia 28 de março. Uns dias antes, uma colega de trabalho me perguntou qual era a minha resolução para a nova idade. Comecei a responder no improviso, sem saber ao certo onde queria chegar. Disse que vivi muitos anos da minha vida dedicada à minha profissão. Que durante muito tempo não consegui entender que outras atividades, fossem elas artísticas, intelectuais ou passatempos, não precisavam ter um fim útil. Foi aí que parei e respondi, com convicção: quero ser menos utilitarista!
Mas o que seria esse fim útil? O que eu de fato estou chamando de utilitarismo? A definição do dicionário aqui pouco importa. Eu o defino como esse sentimento, ainda muito enraizado em mim, de não me permitir realizar algo só por realizar. É o contrário do que Antonio Cícero nos sugere na sua poesia “Guardar”: ao invés de guardar o vôo de um pássaro, guardava pássaros sem vôos.
O mais estranho desse sentimento, é que eu sinto prazer em tocar um instrumento, que eu amo aprender músicas novas, melhorar minha técnica vocal, e principalmente, que eu amo escrever. E, por menos modesto que isso pareça, eu gosto de ler (quase sempre) o que escrevo. Existe utilidade nisso?
Quando essa semana, por algum traço da cultura quebequense, um outro colega me fez a mesma pergunta, ou seja, qual era a minha resolução de idade nova, eu não hesitei em responder: quero fazer as coisas que me dão prazer somente por essa razão, sem pensar no que elas vão resultar no futuro. Quero ser menos utilitarista. Meu colega então me disse: mas se você faz só para o seu prazer, então isso é útil para você. Fiquei confusa na hora, e pensei, sem nada dizer, que eu não quero utilidade no que faço. Nem pra mim. Quero só fazer as coisas, como se a ação emanasse de mim sem nenhum propósito. Estou pensando sobre isso até agora. A verdade é que a palavra utilidade é feia, nesse contexto. Então, porque combinar utilidade e prazer?
Isso aconteceu durante uma festinha surpresa que meus colegas tinham feito para mim. Eu trabalho com estudantes indígenas, e frequento muito o espaço reservado para eles, dentro da universidade. No dia da festinha, éramos umas 5 pessoas. Entre elas estava uma estudante que vende brincos, e estava a poeta Joséphine Bacon, de quem já falei em mais de uma newsletter, se não me engano. Joséphine pediu então para que eu escolhesse qualquer brinco, que ela iria me presentear. Escolhi um branco, comprido, com as fases da lua. Coloquei os brincos, ela me olhou e disse, do alto do seu saber poético, que eu precisava ser cuidada, como eu cuido dos outros. Além disso, já tinha escrito o seguinte para mim:
“Para Lívia, você tem a paciência da árvore que espera que a primavera volte para receber suas pérolas em botão”.

Sinceramente, eu não sei que paciência é essa que Joséphine vê em mim. O que eu sei é que desejo que ela seja real, e que eu aprenda a ver a beleza das coisas em si mesmas. E que o meu prazer em fazer coisas belas perdure. Se um dia elas servirem para alguém ou para alguma coisa, será por alguma sorte do destino, não porque eu fiz pensando nisso.
A beleza desta sexta-feira é a publicação do número 7 da Sarabatana! Tá cheio de textos incríveis e fotos maravilhosas da Anna. Corram lá para ver.
Me despeço deixando para vocês a poesia do Antonio Cícero e uma reflexão: o que vocês fazem por vocês, e com que paciência esperam que esse fazer um dia dê frutos? E ainda, para quem serão e de que servirão (servirão?) esses frutos?
Até breve,
Lívia
"Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é,
iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é,
velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela
ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar."
Antonio Cícero
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