Newsletter - 01/08/25
- Anna Davison

- 1 de ago.
- 3 min de leitura
É preciso dançar.
Trilha sonora para essa edição: Yellow, Coldplay
I
8h os vizinhos saem com a criança batendo a porta, não por raiva, mas por pressa. Desperto com o barulho seco da madeira. Penso em seus vultos antes de voltar a dormir. É sábado e não preciso acordar ainda. Nunca vi a criança. Sempre saem e chegam com ela quando não estou perto da porta.
10h acordo de vez, numa espécie de sobressalto, como se me faltasse fôlego. O aquecedor está ligado e o ar, seco. Não tenho vontade de levantar. Percebo que estou sozinha na cama, me endireito e tento umas respirações. Quero a energia que sinto descendo pelo corpo quando logro meditar. Não consigo.
10h10 já estou de pé na cozinha esperando a água ferver para o café. Lembro de ter pensado em um texto às 8h da manhã quando saíram com a criança e me acordaram. Tudo de que tenho memória é que ele se organizava a partir do horário em que as coisas aconteciam.
Entre 8h e 10h sonhei que estava na praia. Parecia ser no Vietnã. Uma viela estreita como meu corpo desembocava na areia grossa. Uma mulher pequena me guiava. Ela queria me mostrar o lagarto que encontrou ali. Ele tinha o poder de crescer antenas iguais às torres de TV das grandes cidades, com luzinhas na ponta e tudo.
11h me sento para tentar lembrar do texto e do sonho com os dedos no teclado. Como sempre, o que escrevo toma forma própria. Fracasso em recriar o que acontece entre o sono e o despertar.

II
Uma pessoa sábia me disse recentemente que o problema é que está me faltando movimento. Interno.
III
Dentre as minhas obsessões do momento, está perceber as cores que se repetem enquanto caminho. Essa semana, amarelo. Essa também era a cor da areia da praia no meu sonho e foi por muito tempo minha cor preferida. Agora, acho que é verde, o que me faz lembrar de uma professora incrível que tive em um curso de materiais em arte na UnB, que dizia que verde era uma cor muito difícil de usar em pinturas.
Porque é uma cor muito estática.
IV
A criança sempre fala sem parar e muito alto pelo corredor. Nunca consigo entender o que ela diz. Meu espanhol não alcança a velocidade da língua dela, abafada pelas paredes do corredor do prédio.
Tem momentos em que queria conseguir escrever em outra língua que não o português, mas não me é possível. Não porque eu não escreva bem o suficiente em outra língua, mas porque a escrita vem de um lugar íntimo demais, que só a língua materna é capaz de escavar. Lembro que Murakami conta que, quando começou a escrever, buscando a própria voz, passou a escrever em inglês, a limitação de conhecer a língua menos que o japonês o forçava a criar uma forma muito própria de dizer.
Há sempre muitas formas para dizer. E para se mover. Tantas quanto são os tons de amarelo.
V
Amanhã Pedro faria 44 anos. Enquanto me esforço para escrever o livro que trata do que foi para mim essa perda, me deparo incessantemente com o binômio rigidez/fluidez. Como venho dizendo, não é fácil, mas é também bonito, de algum modo. Aos poucos, vou mexendo o corpo, tentando uma dança com as memórias, essas senhoras fugidias e tão irreais, capazes de criar antenas com luzes multicoloridas.
Há dois dias cortei a ponta do dedo anelar da mão esquerda. Agora tenho dificuldade para digitar. Resistência?
Beijos,
Anna
📚Li Budín del Cielo, da María Luque. Que livro gostoso! Me fez observar mais os pássaros e com mais carinho essa vida que carrego da pele para dentro.
📚Li La ciudad invencible, da Fernanda Trías. É um livro potente e, para completar, a história toda se passa exatamente onde estou morando em Buenos Aires.










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