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Fábio Salem Daie*
Para essa terceira edição, tivemos a honra de entrevistar um amigo que vem nos acompanhando desde antes de publicarmos nossa primeira edição. Fábio é intenso e tem um vasto repertório. Nessa conversa, ele nos convida a pensar sobre questões como ética e estética e sua relação com a literatura, dentre outras tantas importantes reflexões. Esperamos que vocês se inspirem tanto quanto nós com suas respostas!
Como foi o processo de se tornar escritor?
Não me considero um escritor. Ou, se for responder seguindo a pergunta, não sei se me tornei um escritor. Alguém disse que no mundo existem muitos livros e poucos escritores, e isso não poderia ser mais correto, na minha opinião. Acho que há uma noção equivocada de que alguém se torna um escritor porque publica um livro. Isso é um erro. Alguém se torna um escritor quando tem algo relevante a dizer no mundo da literatura, já não importa se essa pessoa publica por uma grande editora ou se ela escreve num saco de pão.
Isso é assim porque nem todo impulso estético possui necessariamente valor artístico, sobretudo se pensamos o quanto é difícil trazer à luz uma linguagem autêntica (já seja pictural, musical, corporal etc.) num mundo arrasado pela incessante releitura de formas anacrônicas do passado, pelos jargões inculcados da mercadoria, pelo cansaço da função puramente comunicativa da linguagem (aquela vinculada à eficiência e ao resultado). No caso da literatura, poderíamos apenas perguntar: o que significa escrever numa época marcada pela transição do paradigma linear-temporal a um novo paradigma capitaneado pelo Tik Tok?
Então, com uma peça de teatro estreada, um livro de poemas na estante e lutando para terminar um romance, não sei se tenho algo a dizer, ou se criei os meios para dizê-lo. Segundo vejo, o que se diz de relevante no universo artístico vem acompanhado de valores, ideias, paisagens recorrentes, figuras obstinadas, tabus, obsessões – o que um crítico uruguaio chamou certa vez de uma “cosmogonia” do escritor.
O que temos hoje?
Vivemos numa época em que parte dos aspirantes a literatos escreve, no fundo, coisas parecidas com panfletos políticos ou excertos para ganhar likes na rede social. E a crítica, que deveria apontar caminhos, está frequentemente cooptada pelo fisiologismo laudatório do facebook, e mais se assemelha a um emoticon. Vivemos numa época em que se defende que a literatura deve ser “ética”, mesmo se isso significa destruí-la. Há cursos sobre Ética na literatura, e há quem veja razão nisso. Chegamos a esse ponto. Ignoram que a boa literatura é mais emancipadora e humanizadora do que todas aquelas recheadas de belas intenções e do politiquês correto (porém esse é um ponto muito longo, pois é um problema estético).
Em suma, numa época em que creem poder formar escritores como formam advogados, “o processo para se tornar escritor” está longe de ser compreendido na sua justeza.
Qual o espaço da escrita na sua vida?
A escrita é a forma que encontrei para dar sentido ao caos e à arbitrariedade da existência. Talvez essa seja uma das pontes entre a literatura e certas formas de espiritualidade. No fundo, dar sentido em literatura significa “descansar” (da angústia da incerteza, do medo do que é gratuito), o que também pode ser um resultado antiartístico, por assim dizer. Uma literatura que apenas conforta e apazigua não é literatura. Talvez ninguém tenha sabido isso melhor do que Franz Kafka, e talvez seja por isso que os grandes escritores modernos que conheço o leram repetidas vezes, mesmo quando não gostavam da sua obra.
Como é o seu processo criativo? Você tem rotinas de escrita?
A escrita precisa ser a primeira tarefa do dia, seja às 5h30 ou às 9h da manhã. Tento escrever logo depois de acordar. Isto não quer dizer que não posso escrever mais tarde. Somente que o resultado não é o mesmo, até onde percebo.
Como você define o que escreve?
Não acho que é minha tarefa definir o que escrevo, nem que seja do interesse do artista definir o que cria. Afinal, definir é colocar finitude em algo, e isso vai contra as ambições polissêmicas que – mesmo se não assumidas – estão na obra que se constrói. De resto, minha experiência me diz que normalmente o escritor é a pior pessoa para descascar a própria laranja. Jorge Luis Borges, por exemplo, que chegou a ser visionário em alguns de seus ensaios sobre outros autores, era um dos mais ineptos críticos da literatura borgeana.
Quais são suas influências?
Muitas. Mas, para ficar na ficção, diria Graciliano Ramos, Juan Rulfo e William Faulkner. São os três mais consistentes e mais bem sucedidos narradores modernos, na minha opinião. Aqueles que compreenderam a fundo a língua que falavam e a desnudaram ao caroço. Outro que também o fez – e por isso é tido como o maior classicista da língua espanhola junto com Miguel de Cervantes – seria Borges. Mas ele, tal como Guimarães Rosa, no Brasil, criou soluções artísticas que não me apetecem tanto. E isso é questão de gosto pessoal.
Que livro você gostaria de ter escrito? Por quê?
Escrever dá trabalho. E se você é um criador exigente, escrever demanda uma série de reescritas, leva tempo e consome suas melhores energias. Talvez esteja enganado, mas raros são os escritores que sentem prazer na atividade da escrita.
Isso dito, o livro que gostaria de ter escrito é um desses volumes com o poder de condensar tudo o que alguém sente que tem a dizer, e que, após terminado, poupa-o da necessidade de escrever. Um ‘O Apanhador no Campo de Centeio’, de Salinger. Um ‘Lavoura Arcaica’, de Nassar. Gostaria de escrever um livro que me libertasse da solidão do trabalho da escrita (que é necessariamente solitário) e me devolvesse de vez à vida gregária, o que, apesar de não ser a única, é a fonte mais confiável de felicidade. Mesmo contra todas as probabilidades, espero terminá-lo nos próximos meses. Mas – ironia – talvez gastemos a vida para fazer um livro assim.
*Fábio Salem Daie é doutor em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo e, durante o período de doutoramento, foi pesquisador convidado pelo departamento de Português e Espanhol da Princeton University (NJ-EUA), apoiado pelo Fulbright Doctoral Dissertation Research Award (DDRA). Realizou o pós-doutorado em Études Littéraires na Université du Québec à Montréal com o apoio do Fonds de Recherche du Québec (Bourse d’excellence pour étudiants étrangers – PBEEE). Contribuiu como autor e parecerista técnico para revistas, jornais e editoras do Brasil e do exterior. Além de trabalho em dramaturgia com a Cia. Fábrica de Teatro, publicou em 2023 a coletânea de poemas Caminho de Cães (Editora Patuá). Atualmente finaliza o primeiro romance.