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buenos aires não tem fim
Diego Lops

Néstor Vázquez corre sem parar, fugindo do enorme cão negro de olhos vermelhos que o persegue pelas ruas desertas de Buenos Aires. Aos trancos, segue pelo calçadão estreito da calle Florida, ouvindo os passos pesados do animal. Não sabe quantos quarteirões já dura aquela perseguição abaixo de chuva, até que avista os grandes letreiros luminosos dos teatros da Avenida Corrientes. Olha para trás e não vê o cão. Resolve se refugiar em uma estação de metrô. Entra na Callao, Linha B, descendo pelas escadas e perdendo-se pelos labirintos dos corredores cada vez mais escuros. Vai tateando pelas paredes de azulejos em busca de uma saída. Sente nas mãos uma grade de ferro, ao mesmo tempo que percebe a aproximação do cachorro. Ouve o barulho do trem, é a sua chance. Sacode a grade com toda sua força até que suas mãos sangrem, e a grade se abre. Já enxerga a luz do trem, e o bicho aparece na outra extremidade da estação, caminhando lentamente, parecendo aumentar de tamanho a cada passo, os olhos fixos em Néstor. O barulho do trem aumenta, e o animal segue inexorável o caminho até sua presa. Pensa em se atirar nos trilhos para escapar do seu perseguidor.
Sempre acordava antes que o animal o alcançasse. Entregaria de bom grado sua carne ao cão negro se tivesse a certeza de que tal sacrifício daria um fim à angústia onírica que se repetia havia meses.
À mesa, tomou em silêncio o café forte preparado pela mulher, nem pensou em lhe mencionar o sonho novamente. Olhou o relógio na parede, não iriam tolerar mais um atraso: “Aquele povo não perdoa”, pensou. Na sua idade, dá graças a Deus pelo emprego que tem. Saiu sem escovar os dentes e sem beijar a mulher, para não perder o ônibus 29 para a Embaixada de Israel, na calle Arroyo, onde trabalhava como zelador. Durante a viagem, esforçou-se para não adormecer e perder o ponto. Se distraía contando quantas colegiais de uniforme via no caminho. Desceu apressado, e na calçada esbarrou em um jovem de barba, que trazia um pacote nas mãos como se fosse um filho. A trombada quase lhe tirou o equilíbrio, mas o jovem nem olhou para trás, agarrado ao seu pacote. “Essa juventude...”, resmungou Néstor já se identificando na portaria.
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Uma picape Ford F-100 cortou a frente do táxi. O motorista começou a abrir o vidro para gritar um xingamento, mas se segurou ao se lembrar de quem ia no banco de trás. Alejandra pediu para descer uma esquina antes, e não na frente do colégio, pois lhe envergonhava o fato de ter um pai taxista. Desceu depois de se certificar que nenhuma conhecida passava pela calçada. Já estava a dez metros do carro quando ouviu:
“Ale! Teu almoço, querida!”. Era o pai com uma sacolinha nas mãos. Ela voltou correndo e resmungou algo que o pai aceitou como uma espécie de agradecimento. Naquela manhã, depois da maçante aula de matemática, Alejandra encontrou suas amigas no banheiro para fumar escondido um cigarro compartilhado. No intervalo daquela interminável manhã, propôs às amigas irem fumar na praça do outro lado da escola. “De jeito nenhum, se formos pegas seremos expulsas”, disse uma delas.
Ela não se importou e foi sozinha mesmo. Sentou-se à beira da fonte e acendeu o cigarro roubado da bolsa de sua mãe, protegendo-o com a mão em concha e em seguida soltando uma longa e aparentemente prazerosa baforada, como via fazerem as mulheres nos filmes. Fumar sozinha e em público era diferente, era um passo à frente das suas colegas receosas. Era o máximo de transgressão que se permitia, mas já planejava outras, para quando ficasse mais velha e menos presa. Com o cigarro entre os lábios, tirou um bloquinho e lápis da mochila para escrever um poema, mas as palavras não saíram. Deixou o sol lhe cobrir o rosto, deu mais uma tragada e sorriu com o canto da boca.
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Abel Kreigsman não sabia o que mais poderia acontecer para que a sua manhã ficasse pior. Tal era a lista de pequenos infortúnios que já estava prestes a esquecer a irritação e rir de si mesmo. Logo que acordou, sentiu uma incômoda dor de dente. Foi telefonar ao dentista para marcar uma consulta, mas o aparelho estava mudo, teria que fazê-lo mais tarde, no trabalho. Depois, no caminho até a garagem, pisou em um cocô de cachorro, e teve que voltar para trocar de sapato. Ainda cedo, quando chegou à Embaixada para tratar do seu visto – pleiteava a cidadania argentina –, achou a única vaga livre para estacionar, parou à frente dela e engatou a ré, quando uma caminhonete entrou rápido por trás e estacionou antes dele. Soube então que o atendimento só começaria dali a meia hora, e decidiu ir tomar um café com medialunas na Confitería Comelli, sua favorita. Chegando lá, descobriu que as medialunas estavam esgotadas, outra fornada só dali a uma hora. Não era possível, esgotadas tão cedo? Mal podia acreditar em tanto azar. Foi quando abriu o jornal e leu que o River Plate havia perdido para o Boca.
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Tarek não dormira na noite anterior. Sabia que precisava estar descansado, ter concentração total para a sua importante tarefa, mas a excitação era demais para que relaxasse. As mãos no volante da F-100 suavam, quase não conseguiu desviar a tempo de um táxi que vinha lento à sua frente. Chegando à esquina da Arroyo com a Suipacha, estremeceu ao notar que havia apenas uma vaga de estacionamento em frente à Embaixada, e um carro estava prestes a tomá-la. Não poderia vacilar, acelerou o que pôde e meteu a picape no espaço entre dois carros, antes que o outro motorista pudesse dar ré. Respirou fundo, aliviado por não terem criado caso. O ronco do estômago o lembrava de que, além de ter passado a noite em claro, também não comera nada nas últimas horas. Deixou o carro e saiu em busca de alimento. Diante do balcão, na indecisão de quantas medialunas levaria, sua fome falou alto: “todos”. Foi uma bobagem, pensou, pois a última coisa que queria era chamar a atenção com um comportamento anormal. Seu desassossego não poderia vir à tona, o melhor era caminhar devagar, mas sem hesitação, mesclar-se ao balé desleixado dos passantes. Nesse momento, chocou-se com um senhor que vinha não sabia de onde, e quase o derrubou. Num ato reflexo, segurou forte o pacote, esmagando parte de seu conteúdo.
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Depois de tirar o farelo da camisa e do banco, Tarek olhou pelo vidro do carro. As pessoas continuavam indo e vindo pelas ruas, ignorando tudo o que não era elas, com pressa de chegar aonde nem queriam ir. À beira da fonte, uma menina de saia preta e meias brancas até os joelhos, com gestos que pareciam ensaiados, pisava vagarosamente uma bituca de cigarro que havia descartado. Depois de tirar os cabelos dos olhos, saiu andando serenamente. Ale olhou para os dois lados antes de atravessar a rua. Tarek decidiu que era hora.
Nesse dia, Néstor, Abel, Alejandra, Tarek e outras 26 pessoas respiraram Buenos Aires pela última vez.