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Sarabatana - Revista Independente de Literatura - Edição 5
cavidade de instantes 

Valquiria Rodrigues

Sarabatana - Revista Independente de Literatura - Edição 5 -cavidade de instantes - Valquiria Rodrigues

as paredes

elas sabem que existem, e eu existo dentro delas e dessa fusão um resultado de estações intermináveis, abarrotadas de peculiaridades “as luzes do sol banhando parte; os livros convidativos plantados na cabeceira, frescos; o criado mudo grávido de analgésicos; a banheira de plumas”

afeiçoei-me a viver entre nós

onde o ar revestido de neve entorpece logo na entrada, assim as gotas de orvalho se projeta como um tecido líquido de gosto cítrico que flui da testa até o queixo

o calor excessivo

o incômodo logo molesta a atmosfera

e o apartamento parece sufocar no vácuo. Desnorteado varre toda a sua extensão detectando falhas imperceptíveis aos meus olhos distraídos

no armário a sombra das taças, da esquerda para direita, intacta

no piso uma película sem mácula 

no guarda-roupas um espaço em branco

na sala um rádio permanentemente ativo

fico arrepiada quando intercepto sua contração acelerada

da pracinha do bairro, onde me encontro, esse sentimento de instantes não me causa estranhamento, o ar amordaçado dentro dele aqui se cobre de uma certa ousadia, ganha resistência, arrebenta violentamente contra minha face

escaldo a alma por instantes e ruídos de teias colantes captura os meus sentidos

crianças brincando na grama, mães desajeitadas mergulhando em roupas empoeiradas, um exercito de pupilas armadas, o balanço em agitação interminável oscilando entre dois mundos, brinquedos em hipnose na grama

do meu habitat bem rente à agitação, sinto os golpes, sob meus pés um amontoado de areia movediça 

e submerso múltiplas vezes infinitas

das entranhas ecoam gritos, tão secos quantos mudos

os pulmões ameaçam uma greve ininterrupta

eu protesto veemente  

e volto

depois; trégua

antes porém, a padaria, passar na padaria, comprar um pão, agarrar pelas unhas o último jornal. E depois disso tudo, disso tudo, aparentar interagir com a agitação, distrair-se em um banco surrado na pracinha

as horas fora de casa, a saudade esfriando o chá por cima da mesa, e eu fingindo esquecer o tempo

buzinam, são os maridos pulando para o cativeiro, de seus carros comuns, buzinam. Os vultos dos adultos se agitam, os pequeninos ingênuos procuram um cantinho para se esconderem depois colo forjado em camisa de foça, e se vão, me largam, me abandonam

o ar até parece mais fresco, agora

as flores desacompanhadas coladas nos galhos distantes sorriem

as poeiras trazidas de longe descansam

e o meu consciente afunda no piso denso

de canto de olho, um sobressalto, vislumbro a vizinha de uma existência passada

o Jornal, o pego e o transformo em tecido humano, que de tão corriqueiro fica fácil se perder dentro dele

devaneio

as esquinas se esquivam das réplicas, as frases prontas são concebidas em longa escala, uma repetição impossível de se reprogramar 

pronto, passou. Alívio. Sumiu entre o barulho irritante dos seus sapatos. Dela escapou as frases não ditas transpassando as moradias construídas nas circulações dos meus vasos sanguíneos

observando seu distanciamento cresce a necessidade da cura, da confissão, a obrigação de desmascarar o lodo, alforriar vozes em mim, deixar fluir o incomodo de ainda não ter acostumado, fica difícil a constância da sobriedade entre as línguas que me lambem por todos os lugares que habito

me florescendo, me rabiscando

me apontando 

o alto-falante queimando minhas roupas

expondo as vísceras 

o meu corpo um vasto parque virgem e com quase cinquenta a solidão já faz parte das abalos sísmicos da vida

e se pica, o ferrão enfeita

ornamenta certas nostalgias forjadas “os filhos que assoviam as primeiras letras no jardim de infância; os pés másculos que me acotovelam por debaixo da mesa; os jantares abastados de flores comestíveis, vinagre, e vinho; as brigas no dilúvio de julho; a lista de compras congelando na cadeira; a respiração, o ataque cardíaco sob os lenções; o contato dos filhos nas manhãs nubladas; as excursões beira mar, ora em pira, ora em maresia, ora em ressaca”

respiro

recosto o jornal

e respiro

amanhã terminarei o artigo, o despejarei na redação. Vou a pé de folhas nas mãos, exercitando as pernas, as ideias

isso de enfiar-me pelos passantes que desconheço

encará-los nos olhos sem a necessidade de justificas

faz-me bem, refreia 

desarma as sensações de dentro de mim

por ora, nas entrelinhas da pracinha sossego 

soberania para deleitar o frescor dos poros, o aquecimento climático interno uma casualidade libertina

enterro as costas no encosto 

as plaquetas se assentam

e o banco rompe algo que os cientistas desconhecem.

Edição 5

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