
cavidade de instantes
Valquiria Rodrigues

as paredes
elas sabem que existem, e eu existo dentro delas e dessa fusão um resultado de estações intermináveis, abarrotadas de peculiaridades “as luzes do sol banhando parte; os livros convidativos plantados na cabeceira, frescos; o criado mudo grávido de analgésicos; a banheira de plumas”
afeiçoei-me a viver entre nós
onde o ar revestido de neve entorpece logo na entrada, assim as gotas de orvalho se projeta como um tecido líquido de gosto cítrico que flui da testa até o queixo
o calor excessivo
o incômodo logo molesta a atmosfera
e o apartamento parece sufocar no vácuo. Desnorteado varre toda a sua extensão detectando falhas imperceptíveis aos meus olhos distraídos
no armário a sombra das taças, da esquerda para direita, intacta
no piso uma película sem mácula
no guarda-roupas um espaço em branco
na sala um rádio permanentemente ativo
fico arrepiada quando intercepto sua contração acelerada
da pracinha do bairro, onde me encontro, esse sentimento de instantes não me causa estranhamento, o ar amordaçado dentro dele aqui se cobre de uma certa ousadia, ganha resistência, arrebenta violentamente contra minha face
escaldo a alma por instantes e ruídos de teias colantes captura os meus sentidos
crianças brincando na grama, mães desajeitadas mergulhando em roupas empoeiradas, um exercito de pupilas armadas, o balanço em agitação interminável oscilando entre dois mundos, brinquedos em hipnose na grama
do meu habitat bem rente à agitação, sinto os golpes, sob meus pés um amontoado de areia movediça
e submerso múltiplas vezes infinitas
das entranhas ecoam gritos, tão secos quantos mudos
os pulmões ameaçam uma greve ininterrupta
eu protesto veemente
e volto
depois; trégua
antes porém, a padaria, passar na padaria, comprar um pão, agarrar pelas unhas o último jornal. E depois disso tudo, disso tudo, aparentar interagir com a agitação, distrair-se em um banco surrado na pracinha
as horas fora de casa, a saudade esfriando o chá por cima da mesa, e eu fingindo esquecer o tempo
buzinam, são os maridos pulando para o cativeiro, de seus carros comuns, buzinam. Os vultos dos adultos se agitam, os pequeninos ingênuos procuram um cantinho para se esconderem depois colo forjado em camisa de foça, e se vão, me largam, me abandonam
o ar até parece mais fresco, agora
as flores desacompanhadas coladas nos galhos distantes sorriem
as poeiras trazidas de longe descansam
e o meu consciente afunda no piso denso
de canto de olho, um sobressalto, vislumbro a vizinha de uma existência passada
o Jornal, o pego e o transformo em tecido humano, que de tão corriqueiro fica fácil se perder dentro dele
devaneio
as esquinas se esquivam das réplicas, as frases prontas são concebidas em longa escala, uma repetição impossível de se reprogramar
pronto, passou. Alívio. Sumiu entre o barulho irritante dos seus sapatos. Dela escapou as frases não ditas transpassando as moradias construídas nas circulações dos meus vasos sanguíneos
observando seu distanciamento cresce a necessidade da cura, da confissão, a obrigação de desmascarar o lodo, alforriar vozes em mim, deixar fluir o incomodo de ainda não ter acostumado, fica difícil a constância da sobriedade entre as línguas que me lambem por todos os lugares que habito
me florescendo, me rabiscando
me apontando
o alto-falante queimando minhas roupas
expondo as vísceras
o meu corpo um vasto parque virgem e com quase cinquenta a solidão já faz parte das abalos sísmicos da vida
e se pica, o ferrão enfeita
ornamenta certas nostalgias forjadas “os filhos que assoviam as primeiras letras no jardim de infância; os pés másculos que me acotovelam por debaixo da mesa; os jantares abastados de flores comestíveis, vinagre, e vinho; as brigas no dilúvio de julho; a lista de compras congelando na cadeira; a respiração, o ataque cardíaco sob os lenções; o contato dos filhos nas manhãs nubladas; as excursões beira mar, ora em pira, ora em maresia, ora em ressaca”
respiro
recosto o jornal
e respiro
amanhã terminarei o artigo, o despejarei na redação. Vou a pé de folhas nas mãos, exercitando as pernas, as ideias
isso de enfiar-me pelos passantes que desconheço
encará-los nos olhos sem a necessidade de justificas
faz-me bem, refreia
desarma as sensações de dentro de mim
por ora, nas entrelinhas da pracinha sossego
soberania para deleitar o frescor dos poros, o aquecimento climático interno uma casualidade libertina
enterro as costas no encosto
as plaquetas se assentam
e o banco rompe algo que os cientistas desconhecem.