Newslleter - 28/03/25
- Anna Davison
- 28 de mar.
- 3 min de leitura
Uma trilha sonora para uma existência passada.
Trilha sonora para essa edição: Famous Blue Raincoat, Leonard Cohen
I
Faz mais de uma hora que encaro essa página em branco, enquanto canto junto com Leonard Cohen e Nick Cave. Uma trilha sonora para uma existência passada. I hear that you're building your little house deep in the desert… I hope you're keeping some kind of record, diz Cohen. Como fazia há anos atrás, ouvi de novo e de novo. A mesma música. Acho que queria, de algum modo, dar mais um passo na direção de uma certa (e necessária) despedida de uma parte de mim.
Por fora, ninguém há de notar diferença. Mas dentro tem uma correnteza muito forte, arrastando os restos de matéria orgânica que se acumularam nas margens por mais de quatro décadas. No centro, tudo é claro. Tanto, que ainda não consigo olhar. Só sentir.
Nas minhas entranhas, minha casa no deserto já tem paredes e o começo de um telhado. Acho que vou deixar uma parte descoberta, para poder ver as estrelas quando deitar na cama.
II
Essa é a fonte da procrastinação.
III
Enquanto me falta coragem para olhar e manter alguma espécie de registro, arrumo outras coisas menos importantes para ocupar minha cabeça. Faço compras para o almoço, lavo as folhas para a salada, leio muito. Às vezes, danço olhando meu reflexo no vidro da porta de entrada.

I hope you're keeping some kind of record
Repito o conselho para mim mesma. Tento responder às perguntas que eu mesma faço sobre os motivos pelos quais o que é mais importante para mim sempre acaba ficando para depois.
IV
Não tenho como apontar culpados, não fora de mim. É tudo parte do medo de que venho falando nas últimas newsletters.
Medo de assumir a escritora que tenta sair pelos meus poros, ou rasgar minha pele, ou me escorrer pelos olhos.
I hear that you're building your little house deep in the desert
Peço a ela um pouco mais de paciência, mantenho algum registro escrevendo essa newsletter.
V
Quando eu estava me mudando do Brasil, em 2018, meu irmão me disse empolgado que eu poderia, no novo lar, me apresentar como eu quisesse. Lá ninguém me conhecia e eu teria a chance de ser qualquer versão de mim. Escolhi a mesma que eu vinha arrastando há anos. Ainda era preciso. Mas acho que foi naquela conversa que a semente da possibilidade de ser outra, sem precisar dar explicações a ninguém, foi plantada.
Hoje, já carrego uma árvore. Uma árvore no deserto, prestes a dar frutos.

VI
Isso é, aliás, uma das coisas que mais me fascinam na literatura: podemos criar muitos mundos. Podemos ser possibilidades infinitas. Múltiplas.
VII
Ainda na Universidade, fiz uma disciplina de pintura. O professor seguidamente me perguntava onde estava meu lado feio. Precisei de anos de terapia para querer olhar para ele.
Minha casa no deserto não precisa ser bonita.
I hope you're keeping some kind of record.
Só precisa ser minha.
O que você acha de ser outra versão, de desconstruir as certezas, por escolha? Sim, por escolha, não porque a vida está te obrigando. Vamos trocar fotos das nossas pequenas casas no deserto?
Até breve,
Anna
📚Entrei num modo Joan Didion e li O ano do pensamento mágico e Noites azuis, um depois do outro. Os dois falam de se reconstruir, de algum modo e são parte das minhas pesquisas para meu próximo livro. Me encanta a forma simples com que Didion nos conduz a entrar na sua pele. Tanto, que já engatei no White Album. Hahaha!
📚Também estou lendo Las reuniones, da Rosário Bléfari. É um livro de contos enigmáticos e muito belos. Recomendo!
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