ENTREVISTA
flávia péret
Flávia Péret é escritora e professora de criação literária. Mestre em Teoria da Literatura e Doutora em Educação pela UFMG. Em 2018, recebeu o prêmio Jean-Jacques Rousseau, pela Akademie Schloss Solitude (Alemanha) pelo projeto Uma Mulher (livro e site de escrita expandida). Em 2010, foi vencedora do prêmio Memória do Jornalismo Brasileiro, promovido pelo Jornal Folha de São Paulo. Em 2023, foi uma das vencedoras do Prêmio Carolina Maria de Jesus, com um livro de poemas, ainda inédito. Há 10 anos, desenvolve e pesquisa processos e metodologias no campo da palavra e sua interseção com outras linguagens artísticas. Desde 2020, é professora da especialização em Escrita Criativa do IEUC/PUC-Minas. Publicou os livros: Imprensa Gay no Brasil (2011), 10. Poemas de Amor e de Susto (2013), Outra Noite (2014), Novelinha (2016), Uma Mulher (2017 e 2018), Os Patos (2018), Mulher-Bomba (2019) e Instruções para montar mapas, cidades e quebra-cabeças (2021). Em 2025, irá publicar os livros "Coisas presentes demais" e "Idioma próprio: fotografia e fabulação em uma palestra-performance".
Redes sociais: @flavia.peret (instagram) | flaviaperet.substack.com

Como foi seu processo de se tornar escritora?
Acho que, no começo, este processo não é muito consciente, o que quero dizer com isso é que sempre que lemos, escrevemos e conversamos sobre livros estamos de certo modo alimentando um desejo de escrever que pode, ou não, mais na frente, desabrochar. O meu desabrochou. Muitas escritoras e poetas quando falam da origem das suas escritas, recorrem a memórias mais remotas, da infância ou da adolescência, para tentar localizar a pré-história deste interesse. E pra mim, esta pré-história está nesses gestos repetidos, constantes e apaixonados de ler e escrever. Como aconteceu com tantas outras mulheres escritoras, na infância e adolescência, escrevi muito. Escrevia cartas e, no início dos anos 90, comecei a "fazer agenda". As agendas foram uma febre. Era literalmente uma agenda, com a marcação do dia, mês e ano. Fazer agenda não significava apenas escrever, mas desenhar, colar coisas (passagens de ônibus, rótulos de garrafas de vinho, folhas, fotografias, cartões postais, bilhetes etc) e também fazer colagens a partir de recortes de revistas. Eu adorava tudo isso. Era algo que demandava tempo e dedicação. Eu escrevia todos os dias, mas, quando a semana era muito corrida, eu passava as tardes de sábado "fazendo" agenda. Depois, comecei a estudar jornalismo, o sonho era conseguir escrever, o que não aconteceu, já que durante o período em que trabalhei como jornalista - foram cerca de seis anos - trabalhei em TV e assessoria de imprensa. Esse não-escrever acabou provocando uma frustração muito grande. Eu queria escrever, mas não encontrava o espaço. Para minha sorte esse desejo de escrita foi canalizado para a literatura. Por volta de 2001, comecei a escrever poemas. Voltei a escrever todos os dias, nos caderninhos, mas, ao contrário das agendas, que eram uma tentativa de produzir um relato objetivo do meu cotidiano, esses novos escritos eram mais trabalhados, as experiências começaram a ser transfiguradas, começaram a se desdobrar em outras imagens e emoções.
Qual o espaço da escrita na sua vida?
O espaço da escrita na minha vida é total, não consigo imaginar minha vida sem a escrita e sem a leitura, ou seja, sem a literatura. Pra mim, ler e
escrever é uma dupla indissociável.
Como é o seu processo criativo? Você tem rotinas de escrita?
Vai depender do texto, do tempo que terei para escrever, da minha ansiedade, da minha dificuldade (ou não) de concentração, dos desafios inerentes a toda escrita e àquela escrita em particular. Por exemplo, escrever uma tese de doutorado foi algo que demandou muita disciplina, concentração, energia e um esforço para não me sentir acossada pela pressão, pelo tamanho da coisa. Já escrever poemas ou outros textos, algo entre o ensaio e o relato, é total da ordem do prazer, eu sinto um enorme prazer, uma alegria, um sentido de existência e imanência profundos. Nessas horas até chego a me perguntar: e as pessoas que não escrevem? elas vivem do quê? O que não significa que seja fácil. É sempre complicado. Eu tenho que desembaraçar um nó, mas amo mergulhar de cabeça nesta complexidade. Passar a viver certo período de tempo – meses, semanas, anos – com um texto na cabeça, obcecada por um texto, pensando o tempo todo nas infinitas associações e caminhos que posso seguir é a coisa que mais gosto de fazer na vida. A escrita me tira da realidade e me coloca na realidade. Não tem contradição. É junto.
Sobre processo criativo é difícil mostrar como a mente funciona – porque pra mim processo criativo acontece dentro e fora, também, simultaneamente, os estímulos estão dentro e fora de mim. Vou tentar explicar. Basicamente, quando eu entro neste “estado de escrita” – é bom dizer que, às vezes, eu demoro para entrar nele – parece que tudo ao meu redor está misteriosamente conectado com o texto que estou escrevendo: a vida se transforma num espelho da escrita ou é o contrário? E o que tenho que fazer é apenas me manter atenta e porosa aos sinais. E ter caneta e caderno sempre às mãos, ou celular. Eu vou coletando da própria vida o material do texto.
Antes faço sempre muitas leituras. Essa coleta abarca muitos materiais diferentes – livros, poemas, filmes, imagens, mas, também, coisas que vejo na rua, palavras que escuto, fragmentos ou restos de conversas e diálogos, e também sonhos e o inconsciente que começa a se manifestar intensamente, principalmente no pré-sono. Às vezes, nesses momentos, surgem palavras e até mesmo frases curtas que se articulam diretamente com o que eu estava tentando escrever naqueles dias. Acontece quando estou prestes a cair no sono, luz apagada, sou a prova viva de que os surrealistas tinham razão, risos. Tudo pode se associar com o texto que estou escrevendo, é impressionante.
Recentemente, estava escrevendo um texto sobre meu pai. Ele faleceu ano passado, vítima de uma pneumonia severa e fulminante. Um dia, depois da morte dele, eu voltava de Ouro Preto, minha cidade natal. Meu marido dirigia e eu estava ao lado dele, no carro. Num ponto da estrada, ainda bem perto da cidade, entramos num forte nevoeiro, o que é uma coisa extremamente comum nesta região. A massa acinzentada e etérea de neblina invadiu nossa visão, e nessa cegueira provisória, um ofuscamento branco e efêmero, vi diante dos meus olhos a radiografia do pulmão do meu pai e aquelas mesmas manchas acinzentadas ou esbranquiçadas. Essa imagem entrou no texto que escrevi sobre ele, a neblina conduz o texto, transformou-se numa coisa só: a neblina da cidade, a neblina em cima do pulmão, a neblina que é a infância e também o amor. Algo sempre está um pouco encoberto.
até chego a me perguntar: e as pessoas que não escrevem? elas vivem do quê?
"
Como você define o que escreve?
Eu escrevo relatos autobiográficos, entre o ensaio e a ficção, escrevo, quase sempre em fragmentos, textos curtos. Gosto da força e da concisão do texto curto e do seu efeito de poesia mesmo sendo prosa. Da descarga elétrica que um texto curto provoca. Meu primeiro livro em prosa - Os patos - tem a forma de fragmento, depois o Instruções para montar mapas, cidades e quebra-cabeças também, e o livro que vou lançar este ano, sobre o Alzheimer da minha avó, também foi um livro todo construído a partir deste método, porque pra mim o fragmento é um método de trabalho, de criação e, principalmente, de montagem.
Toda a minha escrita, até aqui pelo menos, não sei o que me espera pela frente, tem como ponto de partida as minhas experiências de vida. Sempre que posso aproveito para defender as escritas que surgem a partir das experiências, porque a escrita autobiográfica é muito atacada no Brasil. Eu acho que as pessoas deveriam se preocupar menos com a disputa entre ficção X autobiografia, que é erroneamente traduzida como a disputa entre a imaginação e a experiência, e se concentrar na pergunta: o que este texto produz?
A imaginação é indissociável da experiência. Tantas escritoras nos mostraram isso. A Ursula K Le Guin tem um texto chamado oficina de escrita (acho que ainda não foi publicado no Brasil), em que ela irá dizer o seguinte: a ficção elabora a experiência, boa parte do que consideramos memória, experiência e conhecimento são, de fato, ficção, ou seja, são atravessados e distorcidos pela imaginação. Experiência e imaginação não se opõem, elas são indissociáveis.
Quais são suas influências?
As influências variam de acordo com a época. Já foram Rubem Fonseca e Pedro Juan Gutiérrez. Já foram Ana Cristina César e Caio Fernando Abreu. Já há bastante tempo minhas referências são: Paloma Vidal, Marília Garcia, Lydia Davis, Tchekhov, Cecilia Pavón, Sylvia Molloy, Tamara Kamenszain, Adília Lopes, Annie Ernaux, Anne Carson, Maggie Nelson. E mais recentemente, Jazmina Barrera, Isabel Zapata, Clara Muschietti, Laura Wittner, Janet Malcon.
Que livro você gostaria de ter escrito? Por quê?
O livro Desarticulações, da Sylvia Molloy. Acho que o livro que escrevi sobre o Alzheimer da minha avó está profundamente atravessado por este livro - seu tema, sua abordagem, sua forma. Mas também Linea Nigra, da Jazmina Barrera. Espetacular. O livro Passaporte do Fernando Bonassi - amo este livro - meu livro sobre Buenos Aires - instruções para montar mapas, cidades e quebra-cabeças é profundamente atravessado por este livro. Na adolescência, queria ter escrito A insustentável leveza do ser.
Sempre que posso aproveito para defender as escritas que surgem a partir das experiências, porque a escrita autobiográfica é muito atacada no Brasil.