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5:55 (I e II)

Lívia Vitenti

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Saí do teatro tarde, muito tarde. Os mais místicos diriam que olhar o relógio exatamente às 5:55 da manhã significa algo. Só sei que vi os cincos repetidos três vezes e me lembrei do que havia acontecido antes. Olhei ao meu redor e a rua estava completamente vazia àquela hora. Nem sei como tinha conseguido ficar dentro do teatro, como fui a última a sair e o que estava esperando. Você tinha sido o primeiro a ir. Talvez porque não soubesse que eu estava lá. Era outro tempo, outro entendimento. Se soubesse, teria ficado? 

Te via, te escutava, e parecia que você me via também, mas  não exatamente. Havia um vitral entre nós, mas mesmo assim entendi nitidamente você me dizer: vem! É você que tem que me encontrar. Eu não sei quem você é, mas você sabe quem eu sou.

Você ainda me disse muitas coisas. Me fez pensar sobre essa-eu pessoa para quem nada nunca parece ser suficiente, tão cheia e vazia dela mesma. E ao mesmo tempo me deu a possibilidade de acessar a tristeza, porque eu te via com muita nitidez, ou te intuía, quando esse vazio latejante fazia mais parte de mim – ainda faz – mas eu não entendia que não poderia preenchê-lo. Eu o revivia enquanto você me fitava e o que eu via eram os olhos de um outro você, terrível. 

Eu não pretendo que você se lembre de mim. Eu não pretendo. Nem espero. Não há como. Seria como pretender o impossível e esperar o inimaginável. Mas talvez você possa me adivinhar. Não seria uma adivinhação lógica. Eu sou só uma das muitas que vêm e vão. E umas das mais inconstantes. Eu até me emociono, mas não sempre. Me emociono quando sem pedir nada mais que atenção, você mostra seu olhar sobre esses mundos-outros.

 

Aqueles mundos que não são nossos porque distantes, tão dos outros. Mas esses outros são também tão a gente que o mundo diferente, mesmo mostrado através de um caleidoscópio, é um pouco nosso mundo. 

Na coxia do teatro o escuro era galáctico. Havia um espelho que era um vitral e um portal. Eu havia estado no seu mundo mas já não ali. Aquele espelho então, que devia me refletir, me mostrava você, colorindo o meu olhar com seu rosto caleidoscópio e tentando me alcançar. O espelho se partia e algo daquela galáxia vazava para dentro de mim. Você me dizia, vem, volta, eu preciso que você me encontre. Eu não sei quem você é. Você sabe quem eu sou, você tem que me encontrar. A coxia estava repleta. Cheia de gente e de estrelas. Você se foi com elas e eu parada pensando se eu sei quem você é. Hoje eu vejo estrelas e parece que te estou vendo, fragmentado, fragmentos que são um firmamento, outra vez.

5:55 (II) 

Acordei com urgência. Era pouco mas era tarde já. Estava perdendo tempo e precisava agir. A estrada estava iluminada, não era preciso duvidar diante da bifurcação, hesitar diante da separação. Tinha que voltar ao teatro aquela noite ainda, te ver representando uma dor, curvado, dobrado sobre si, falando de amor, retorcido, amor difícil, amor duvidoso. Personificando monstros. Contando uma história de negação, a nossa história. Tinha que dessa vez sim atravessar o vitral para poder te tocar. Te dizer sim, um dia, não tardo, prometo. 

Fui correndo e consegui entrar, quase última. Dessa vez sim a coxia estaria acessível e você penetrável. Tive medo porque é a única coisa que sei sentir com alguma certeza, mas dessa vez o sucumbir viria acompanhado de uma insuspeita paz. Era me saber gente. Não dava para te seguir. A bifurcação era só sua. Eu estava encostada naquele acúmulo que crescia deforme e anunciava ficar horroroso. 

Três anos assim, escapando ao mesmo lugar. A um lugar que vislumbrei, tentei mudar o rumo, e logo voltei. No primeiro momento que te vi, sabia. Era um rapaz descalço apesar do frio. Um rapaz que parecia haver escolhido o caminho mais claro e menos tortuoso da floresta. Como se soubesse que se seguisse o outro caminho encontraria corpos, árvores cortadas e nenhuma explicação. 

Você corria pela floresta, essa mesma, que eu via com tanta nitidez no clarão da fogueira, e pensava que fazia bem em seguir pelo caminho oposto. Quando começamos a conversar, me dei conta que você vivia em uma casa com um quintal bonito. Um quintal amplo com um pequeno lago no meio. Um lago ao qual lhe dizia rio e lhe dizia cálido. Esse lago que era um rio significaria muito mais que calor, abrigo. Como pude saber algum tempo depois. 

Era um rapaz que fazia a mãe chorar. O que me deveria ter feito desconfiar. Nunca o fiz. Essa mesma mãe chorava abraçada a algo que fora de barro mas que agora estava quebrado. Como eu haveria de chorar por algo que fora de barro e que depois se quebraria. Como eu haveria de chorar pelos mesmos cacos que ela. Mas de uma outra maneira. Ela foi uma mãe que admitiu sem admitir. Que me disse para ir sem chorar. Que brigou com aqueles que a tentavam impedir de falar com o seu filho, muito embora soubesse que seu filho naquele momento era caco e que não a escutava. Como não escutava a mim.

E eu, uma jovem mulher, que por esses cacos chorava. Que por esse rapaz dizia ter feito minha guerra santa. Dizia que por ele tinha mudado a minha utopia. E quando finalmente você transformou nossa seda em neve. Quando todos se abraçavam e choravam por sua ausência. Quando todos se deram conta do que eu havia me dado conta há muito, foi para mim que deram a menor bandeira.

Passei muito tempo dentro daquela coxia, onde não só você mas eu também me converti em caco. Éramos dois pequenos bonecos que riam e tentavam se abraçar. Sempre dentro do teatro que ironicamente levava só o meu nome na fachada. Finalmente ouvi o chamado, alguém que me dizia volta. Voltei às 5:55 da manhã. Chorando. Mas voltei. 

Número 1

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