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Do morrer

Anna Davison

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Ela nasce das costas de um elefante. Os contornos se fundem. Pode também ser o inverso. Ela se derrete nas costas de um elefante. Fato é que seus contornos estão mais fluidos que nunca. Ela sequer sabe o próprio nome. Nascer dói tanto quanto morrer. Uma explosão de luzes e padrões geométricos perfeitos e muito acelerados se alternando como num caleidoscópio. E o rítmo. Alto como uma metralhadora. Angustiante. Não não não nã nã nn. O fim. Depois fica tudo morno e o corpo vai se refazendo. Devagar. Os dedos demoram mais que todo o resto. Deve ser porque são eles que criam os contornos. E o nome. 

Ela quer nascer diferente. Mas não pode. Sempre se nasce só como se deve nascer. Nem mais, nem menos. Pouco importa se a vida que se viveu até morrer precisa ser diferente. Não é. Os olhos castanhos que não renascem verdes olham para ela no espelho. Parece que não deu tempo de criar felicidade. O parto foi acelerado no fim e ela não se fez inteira. Uma parte ficou grudada ao elefante e se faz pesada como ele. Os dedos não são mais capazes de afastar tristezas.

De manhã o sol entra pela janela e ela pensa que hoje vai ser diferente. Ela vai ser mais como a bailarina que dança ao lado do elefante na galeria. Dura pouco. O chão frio que grita na cara dela assim que ela tenta sair da cama. Como a aceleração do parto. Tudo sendo como ela acha que não queria. De noite ela fecha os olhos e os padrões caleidoscópicos fazem menção de entrar na órbita dos olhos castanhos. Ela respira con-tro-la-da-men-te e consegue parar o processo. Ela não sabe que talvez ela consiga terminar o parto no escuro da madrugada se deixar que eles entrem. Sozinha. Sem ninguém para acelerar o que não pode ser acelerado.

A verdade é que ela não está só e essa é a melhor parte dessa vida que segue quase igual depois de ela ter renascido. Mas como ela não reaprendeu ainda a se fazer feliz, ela estraga tudo. De novo e de novo. Ela quer aprender a ser outra. Ou pelo menos enganar os outros que acham que ela ainda é a mesma. Não é. É que ela morreu. E nasceu com olhos castanhos que não combinam com ela. Tristes olhos que a fitam calados do fundo do espelho. Os mesmos de sempre e para sempre. Irremediavelmente castanhos.

Ela sabe que nascer e morrer são ações solitárias. Mas os outros conseguem estragar até isso. Aceleram ou retardam o ritmo que seria dela e é ela quem acaba tendo que viver a vida com dedos inúteis. Dedos que afagam a tristeza ao invés de sufocá-la. Ela imagina os olhos azuis da tristeza saltando de susto quando ela a matar. Basta ter paciência e exercitar os dedos todos os dias. Se descolar do elefante completamente, ou deixar para trás aquele pedaço que ainda está grudado naquelas costas grandes e ásperas. É uma escolha, dizem os outros. Mas ela já nasceu com a certeza de que esses outros olham para ela de cima. É por isso que ela não gosta de estar aqui. É por isso que ela tenta inutilmente acelerar o morrer. O que ela quer é nascer inteira.

Edição 1

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