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Vidas Passadas

Júlia Henning

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antes de tudo era o olhar. era de antes. de tudo o que lembro, o mais distante é a lembrança. a foto amarelada em canoa quebrada. o vento forte na pele da barriga esticada da mãe. o furo no queixo que marca. cada história que me era devido dar a importância. 

não são minhas (as lembranças), sou elas. sempre estivesse ali, mesmo sendo a primeira vez. longe no tempo. a bolacha marinha com três furos, a primeira dos restos de mar que eu viria a colecionar. o outro tempo, sem mim. o tempo antes da morte. os olhos todos procurando um outro em mim. aqueles pequenos olhos caídos me procurando neles. o sorriso solto no maxilar pontudo com gosto de doce de abóbora. antes o quiabo. um touro forte e juvenil, com cachos nos cabelos (sim, cabelos!), o queixo furado, carregando sacos de cimento nas costas, elas largas, trotando nos morros da Fazenda. lá onde tudo era de antes. os olhos ocos da mãe. mais de treze olhos escuros e ocos e focados para além. de mim. o refúgio nos dedos que, mesmo pequenos, se apoiados quase todos eles em uma superfície plana, o indicador levantado, eram pequenos cavalos nas mãos. até hoje procuro cavalos. 

lembrança não tinha nenhuma. a saudade que era deles. a loucura que era dela, com olhos ocos e fogo nas ventas, mais forte que um touro. reconhecia pela pisada. pisava em cascos. 

não pôde.

eu, curiosa, não perdi um gesto. criança encarando monstro. 

o lábio esquerdo mais puxado no sorriso. a mão apoiada no quadril deslocado. bob dylan, tocava? uns restos de mar. daquela praia só ficou o vento. no reflexo do espelho duas bolotas esverdeadas e intrigadas. eu sou ele? meus olhos vão se multiplicar e ficar pretos e duros? 

eu pareço com um touro. 

os polegares pressionando as sobrancelhas grossas como as dele. as costas largas, ombros retos, percebo as bochechas caindo ao longo dos anos, olhar doce encarado, as sobrancelhas intrigadas em chifre, o tempo do ruminar, ataque tardio. de tudo o que é lembrança, o antes era a morte. depois era eu, a falta. um resto de mar. tão gigante e com a barriga enoooooorme cheia dos ventos do ceará, por onde arejam aqueles gestos.

aqui tudo passa.

Edição 1

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